O que permite que a maldade e o ódio façam o seu caminho é o silêncio

Custa-me horrores escutar, falar, e ainda mais escrever sobre a mãe que se esqueceu do filho no carro. É um dos meus maiores medos.

Foto
@DESIGNER.SANDRAF

Mãe,

Custa-me horrores escutar, falar, e ainda mais escrever sobre a mãe que se esqueceu do filho no carro. É um dos meus maiores medos, exactamente porque sinto que pode acontecer a qualquer pessoa nas circunstâncias “certas”, ou seja, erradas.

Todos os casos que envolvem a morte de uma criança podem e devem ser investigados para clarificar o que aconteceu, mas isso deixo para as entidades competentes. De resto, não há nada, nada, mas mesmo nada a comentar ou a dizer sobre esta mãe que perdeu o seu querido bebé num acidente trágico.

Os comentários que a mãe me conta que por aí há (não me peça que os leia!), revelam como queremos desesperadamente acreditar que uma coisa destas só pode acontecer aos outros — a pais piores e mais negligentes do que nós. Mas é mentira, como revela uma reportagem muito dura, mas muito corajosa do The Washington Post sobre o assunto, já de 2009.

Porque, mãe, sabe o que é que os investigadores descobriram quando procuraram encontrar resposta para aquela pergunta cruel do “que raio de pessoa é que se esquece de um filho?” Cito a resposta: “Os ricos, aparentemente. E os pobres, e os de classe média. Pais de todas as idades e de todas as etnias. E é tão provável ser uma mãe, como um pai. Acontece aos distraídos e aos freneticamente organizados, aos licenciados e aos analfabetos. Nos últimos dez anos aconteceu a: Um/a dentista. Um/a carteiro. Um/a assistente social. Um/a polícia. Um/a contabilista. Um/a soldado. Um/a advogado. Um/a electricista. Um pastor protestante. Um rabi. Uma enfermeira. Um construtor. Ao director/a de uma escola. Aconteceu a um/a terapeuta de saúde mental, a um/a professor universitário e a um/a chef de cozinha. Aconteceu a um/a pediatra. E aconteceu a um/a cientista aeronáutico”.

Mãe, esta família precisa da nossa compaixão. E do nosso silêncio.


Querida Ana,

Concordo com tudo, menos com o pedido de silêncio. Por muito que perceba a tua intenção, esta família, esta mãe — todos nós – precisamos que os advogados da compaixão falem mais alto do que aqueles que ansiosamente procuram tranquilizar-se na falsa certeza de que não são como “eles”, como “ela”. Porque o que permite que a maldade e o ódio façam o seu caminho é o silêncio dos que, mesmo com a melhor das intenções, se calam. Estes comentários que felizmente não leste, revelam o pior da natureza humana, e imaginar que representam a maioria das pessoas é insuportável.

Ana, para mim, muito mais difícil do que entender uma tragédia como esta, é tentar perceber o que leva alguém a querer condenar quem já foi condenado à pior das penas. A levianamente fazer juízos de carácter, ou mais insuportavelmente de amor. Como se não amassem os filhos que perderam, por culpa própria.

Nestes momentos lembro-me sempre do Síndrome do Mundo Justo, uma entidade psicológica que explica como perante a ânsia de acreditarmos que vivemos num universo justo, em que as coisas más só acontecem às pessoas más, tendemos a denegrir as vítimas, até chegarmos ao ponto em que de alguma maneira nos convencemos que receberam o que de alguma forma mereciam.

Nós não deixávamos um filho sem supervisão, nós não os deixamos andar sem o cinto, nós não nos esquecíamos da pessoa mais importante das nossas vidas, e por isso aos nossos meninos nada disto lhes podia ter acontecido. Nem a eles, nem a nós.

Não tenhamos ilusões, é um exercício que todos fazemos num primeiro momento, procurando terra firme perante um tsunami. A diferença vem depois, na capacidade que temos de reconhecer as armadilhas da nossa própria mente, de entender que estes raciocínios cruéis nos levam a vitimizar segunda, terceira, milhentas vezes aqueles que já são vítimas. E esse exercício aprende-se, cultiva-se e faz com que não nos deixemos transformar em verdadeiros monstros.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

Sugerir correcção
Comentar