Ciclo de vida, luxo e desemprego

Abril de 2021: despedi-me. Porque não gostava do que fazia? Não. Gostava muito do que fazia. Mas sentia que não podia ir mais além.

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Quando andamos na escola, dizem-nos que vamos para a faculdade estudar uma coisa que adoramos, arranjar um bom emprego, sair de casa, casar, ter filhos, vê-los fazer o mesmo. Isto como se o ciclo de vida fosse assim para todos: living the dream até à morte e consequente renovação da vida.

Pois bem, gostaria que me tivessem dito que “ganhar independência” envolve mais algumas etapas e que não estão ligadas por uma linha recta. 

Antes da entrada no secundário lembro-me de ter preenchido quatro formulários porque não sabia para que lado me virar. Se, por um lado, queria vir a ser locutora de rádio e cronista porque era aficionada pelo Ricardo Araújo Pereira, por outro não descartava a hipótese de um curso de design. Ainda assim, queria ser dona da minha empresa, mas era também fascinada pela química e pelas ciências. Acabei por ir para Ciências e Tecnologias, “porque tem mais saídas”.

No secundário, ninguém nos elucidava propriamente sobre o que podíamos fazer com aquilo que nos ensinavam. E fora da escola, era apaixonada pelo palco, pela dança, sendo que, no final do dia, era isso que eu mais gostava de fazer. Podia perfeitamente ter ido para teatro que o destino me parecia risonho.

Três anos a fazer quebra-cabeças com o meu futuro e acabei em nutrição, porque queria ter impacto na vida de alguém através da alimentação. No entanto, a minha candidatura à faculdade parecia o menu de um snack-bar manhoso que vende refeições tradicionais a turistas: tanto é especialista em bacalhau à Brás, como em leitão e francesinha. Começava na Nutrição, ia até Gestão, passando pela Engenharia Química.

Na faculdade, as dúvidas começaram a ser outras: “Será que é só isto? E o resto?”. Tudo isto me levou, ao longo dos quatro maravilhosos anos que passei na FCNAUP, a questionar a eternidade de um mesmo posto de trabalho, a querer mais do que a simples nutrição dos outros. E atenção que Nutrição vai bastante além da perda de peso e da prescrição de suplementos alimentares para atletas. Percorre a gestão, o marketing, a saúde pública, a psicologia, deixando-nos preparados para muito mais do que pesar e medir pregas cutâneas e aconselhar as pessoas a não comerem tantos doces. Rodeei-me de pessoas ambiciosas q.b. e organizamos congressos como gente grande, criamos uma júnior empresa, conhecemos pessoas e realidades que nas aulas não nos mostravam.

Findos os “melhores anos da tua vida”, seguiu-se o estágio-primeiro-emprego-não remunerado porque ninguém quer pagar e uma pessoa quer despachar o assunto. Desenhei projectos do zero, experimentei e foi-me dada a oportunidade de errar e corrigir, porque é assim que efectivamente se aprende. Fiz uma pós-graduação em gestão. Why not?

Quando o mundo entrou em alerta vermelho entrei num mercado onde nunca pensei trabalhar: o vending. Novo desafio: com uma equipa de pessoas altamente competentes, desenvolver, praticamente do zero, uma nova linha de produto. Todavia, quis o destino que o maior desafio fosse sobreviver a uma pandemia e levar umas bofetadas de humildade, aprrendendo mais sobre pessoas, sobre a vida.

Abril de 2021: despedi-me. Porque não gostava do que fazia? Não. Gostava muito do que fazia. Mas sentia que não podia ir mais além. Pode ser mania minha de querer sempre ir atrás de coisas e de pessoas que tenham muito que me ensinar. E não sou justa para os meus colegas se disser que não aprendi nada com eles. Mas também não seria justa comigo mesma se dissesse que estava confortável com o conforto de ter um emprego “seguro”, mas onde eu não me sentia desafiada nem reconhecida. Às vezes, o reconhecimento está em pormenores: um obrigado, uma prova de confiança. Mas isso são luxos aos quais nem todos têm acesso. Tal como o é uma rescisão de contrato sem ter um rumo definido, quebrando, mais uma vez, o fio condutor do ciclo de vida perfeito. E agora?

Agora vou aprender mais sobre mim, sobre livros que não tive tempo de ler, sobre coisas que não tive tempo de estudar. Vou realizar planos que nunca passaram da última folha do caderno. Vou aprender mais sobre luxo, porque me dei ao luxo de viver mais e sobreviver menos. Quem sabe um dia não hei-de trabalhar nesse setor.

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