O regresso das varandas e quartos que são escritórios: como a pandemia muda a arquitectura portuguesa
Nuno Sampaio, director executivo da Casa da Arquitectura, não tem dúvidas de que está em curso um dos maiores desafios que se colocaram aos arquitectos nos últimos tempos.
Quartos com zonas de trabalho, varandas com a mesma área de uma sala, passeios mais largos nas ruas e uma valorização dos espaços públicos de lazer são transformações impostas pela pandemia em que os arquitectos portugueses estão a trabalhar.
Nuno Sampaio, director executivo da Casa da Arquitectura, não tem dúvidas de que está em curso um dos maiores desafios que se colocaram aos arquitectos nos últimos tempos.
Recriar o espaço doméstico, para harmonizar a ligação entre interior e exterior, mas também adaptá-lo ao fenómeno do teletrabalho ou das aulas em casa tornou-se uma questão “quase de sobrevivência”. “Depois de termos tido este sentimento dos confinamentos, de estarmos fechados, sabemos que o espaço exterior, de varanda por exemplo, é um espaço de grande descompressão”, afirmou o arquitecto à Lusa, recordando que esse mesmo espaço nem sempre foi visto da mesma forma.
Durante anos construíram-se edifícios sem varanda porque uma alteração na legislação fez com que na grande maioria dos municípios fosse considerada área construída em termos imobiliários. “Os promotores diziam que não se vendia ao mesmo preço do espaço interior. Não queriam ter desperdício na varanda”, explicou o arquitecto, que agora recebe pedidos em sentido inverso.
A procura que dita o mercado está não só a exigir o regresso das varandas, como casas com um espaço exterior mais alargado. “Há, por exemplo, alguns projectos que vi, de alguns colegas, em que as áreas exteriores e de varandas são tão grandes já como as áreas de sala. Só para as pessoas terem a percepção do que estamos a falar, de projectos recentes!”, exemplificou.
“As pessoas percebem esta extensão entre o interior e o exterior como um facto profundamente necessário de liberdade, de liberdade individual”, observou.
Para Nuno Sampaio, a pandemia de covid-19 veio alterar a percepção do espaço pela sociedade, em geral: “Os mesmos 15 metros quadrados que dão um bom quarto, se formos encerrados numa cela de 15 metros quadrados vamos achar pouco, como é óbvio, não é?”.
Hoje em dia, acrescentou, já existem mecanismos em alguns municípios que permitem aos arquitectos e aos promotores uma maior liberdade para projectarem e construírem varandas.
Na mesma linha, Nuno Sampaio preconizou um melhor aproveitamento das coberturas dos edifícios – outra tendência que sai reforçada com a pandemia –, para espaços colectivos com uma área de jardim, livres de aparelhos de ar condicionado ou condutas de ventilação.
A casa como antídoto
O director executivo da Casa da Arquitectura concorda que, tal como aconteceu com os cientistas, a pandemia veio valorizar do papel do arquitecto, até porque, até se chegar à fase da vacinação, a casa foi “o único antídoto contra o vírus”.
No que diz respeito ao espaço interior, tornou-se evidente a necessidade de os apartamentos terem áreas de trabalho. “O Bill Gates já falava nisto num livro que publicou há uns anos, que naturalmente dentro de cada casa devia haver um espaço de um pequeno escritório, de uma pequena zona para o computador, que é um aparecimento relativamente recente. A maior parte dos edifícios da cidade foi feita antes da existência do computador”, notou o arquitecto.
“Esta questão de termos um computador em casa afastado da área de televisão, mais recolhido, onde possamos trabalhar um pouco é uma coisa que é absolutamente necessária hoje”, considerou.
Nas palavras de Nuno Sampaio, a pandemia veio “multiplicar ao extremo” esta exigência: “É que já não temos um computador em casa. Temos três ou quatro; do pai, da mãe e dos filhos, que também estão a ter aulas”. “Isto leva a que um só espaço não chegue. Se calhar, o que nós queremos é que cada quarto tenha o seu espaço de computador, ou seja, uma mesa onde a pessoa possa ter lá o seu trabalho”, sustentou.
O acesso ao espaço ou a uma nova organização, bem como à qualidade desse espaço é, no entanto, diferenciado pelo desenvolvimento social.
“Sabemos, por exemplo, que em habitação social onde temos por vezes duas crianças no mesmo quarto – e não só em habitação social, mas a habitação social tem áreas mais reduzidas – percebemos que ter duas crianças no mesmo quarto em telescola é quase incompatível, quase obriga a que cada criança tenha o seu espaço e numa habitação social sabemos que não dá para ter uma zona de trabalho, uma zona de dormir e uma zona de vestir dentro do mesmo quarto”, reconheceu.
Nuno Sampaio defende que é importante fazer uma reflexão sobre estas questões, porque se as habitações já estavam “a crescer” devido a legislação que obriga a incorporar acessos para cadeiras de rodas e novas exigências relacionadas com o conforto térmico, agora torna-se necessário encontrar também “espaço para trabalhar em casa”.
Viva o espaço público!
No domínio público, transformações que estavam em curso, como ciclovias e espaço verde farão cada vez mais parte das cidades, a par da vontade de aproximar o local de residência ao local de trabalho, segundo o arquitecto.
Por outro lado, a necessidade de distanciamento físico evidenciou que são necessários passeios mais largos: “Hoje o passeio clássico do Porto, de 90 centímetros, é curto demais”, constatou Nuno Sampaio, para quem são cada vez mais necessários bons transportes públicos para retirar carros das cidades e reduzir as emissões poluentes.
Em muitos casos o espaço de estacionamento do carro já foi “ocupado por espaço de esplanadas” e de lazer, afirmou o arquitecto, que vê na construção em altura uma forma de libertar solo para jardins e praças com zonas de descanso e fruição ao ar livre.
Há transformações que já estavam em curso e estão agora a ser aceleradas, como habitualmente acontece com eventos de grande impacto na sociedade, sejam guerras, pandemias ou revoluções de qualquer tipo, incluindo o digital.
Para Nuno Sampaio, uma coisa é certa: o espaço público vai ser “valorizado de outra maneira”, enquanto o teletrabalho ganhou um novo estatuto, tendo hoje uma maior aceitação e deixando para trás o tempo em que despendia seis horas de viagem para ter uma reunião de uma hora em Lisboa e regressar ao Porto.