Odemira enquanto espelho da dualidade territorial, social e conceptual

É muito difícil chegar a 2021 sem saber nada do cenário humano miserável que tem dominado a zona de Odemira. Contudo, uma parte do país - aquela que tem voz - só acordou agora por causa de uma polémica sinistra.

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Miguel Manso

Durante quase uma década, os casos de trabalho ilegal e exploração de imigrantes têm vindo a ser denunciados. Até mesmo quando o propósito é denunciar apenas aumento da xenofobia ou os crescentes perigos ambientais da produção agrícola intensiva que tem caracterizado o litoral alentejano e algumas zonas interiores do distrito de Beja, sobretudo, inevitavelmente se aborda também o desrespeito pelos mais básicos direitos humanos que tem sido inerente a este tipo de explorações agrícolas.

Numa pesquisa rápida, é possível constatar que, entre denúncias de associações locais, partidos políticos (nomeadamente PCP, PEV e BE) ou algumas reportagens (sobretudo de medias independentes), é muito difícil chegar a 2021 sem saber nada do cenário humano miserável que tem dominado a zona de Odemira. Contudo, uma parte do país - aquela que tem voz - só acordou agora por causa de uma polémica sinistra.

De um lado, a revolta que se gerou a propósito da requisição civil de um complexo turístico, registado como parque de campismo, que não serve de habitação principal de ninguém, cuja legalidade é duvidosa por estar em área protegida e cujas “casas” não são mais do que pré-fabricados de madeira reservados. Os proprietários incomodados não são proprietários de coisa nenhuma e a empresa que o é está em insolvência, sendo o Estado um dos principais credores.

Do outro lado, a situação que motivou a requisição: milhares de trabalhadores que vivem em condições habitacionais desumanas, sujeitos à exploração dos patrões e vulneráveis à propagação de covid-19. Perante estes dois lados, o bastonário da Ordem dos Advogados decidiu vir a público defender o tal direito à propriedade privada, escolhendo (e sublinho, foi uma escolha) ignorar e desprezando o direito à saúde, à habitação, à dignidade humana.

Estivesse o bastonário sozinho e estaríamos bem. O problema está no facto de esta escolha reflectir a atitude que boa parte do país tem tomado. Seja porque não se passa dentro de uma área metropolitana, seja porque nada se pode dizer contra a agricultura intensiva que todos têm apoiado e incentivado, temos vivido em conivência política com a situação de ameaça aos direitos humanos que atinge milhares de trabalhadores migrantes.

Viverem em contentores degradados e sobrelotados é um pormenor. Serem pagos abaixo do salário mínimo, ou nem sequer pagos de todo, uma condição inevitável do mercado. Serem vítimas de rotas de tráfico ilegal, certamente uma calúnia perigosa para os lucros dos capitalistas que decidem vir destruir os solos e o ecossistema alentejano, em prol da riqueza privada a curto prazo.

Entretanto, agora que a situação é tema por se ter cruzado com uma preocupação central do sector urbano e mediático (no caso, até justificada, mas são poucas), lá teremos nós de ouvir avisos e lamentações de quem esteve anos a assobiar para o lado, e críticas de quem se quer preocupar com os direitos humanos sem criticar o sistema de mercado que permite estes abusos: a exploração capitalista e neoliberal da agricultura e da força de trabalho, impermeável a regulamentações e escrutínios.

Ter uma elite política e mediática a liderar o combate à situação e outra a liderar a crítica à situação, quando ambas sempre incentivaram e apoiaram a agricultura intensiva e foram coniventes com as suas práticas de exploração laboral, dá-nos a imagem perfeita de um país que se senta em Lisboa a olhar para o mar e só se volta para dentro quando o mar se pode ver ao longe.

Texto corrigido às 18h03 de 9 de Maio. O Estado é um dos principais credores e não o principal credor.

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