Colômbia: crónica de tantas mortes anunciadas

Enquanto o mundo olha para o país do lado e escolhe ignorar as violações de direitos humanos que se vivem na Colômbia, a violência e a impunidade continuam.

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Reuters/STRINGER

A Colômbia está em paro nacional desde 28 de Abril, o que significa que está tudo menos parada. A tradução poderá ser enganosa, mas paro significa levantamento, greve, e de forma menos literal, sede de mudança. Multidões de manifestantes têm enchido as cidades colombianas para dar continuidade aos protestos que têm vindo a decorrer desde o início da presidência de Iván Duque. Este povo, cansado da violência e asfixiado por políticas neoliberais, não descansa enquanto não se fizer ouvir.

Esta semana, os colombianos protestaram contra outra tentativa remaquilhada de impor uma reforma tributária com o “objectivo de reequilibrar as contas do país”. No cerne das propostas estaria um aumento do IVA sobre bens e serviços e o alargamento de impostos sobre o rendimento a quem ganhasse acima dos 656 dólares – valores manifestamente insuficientes para uma vida digna. Sob o eufemismo da palavra reforma, nenhuma austeridade é coisa pouca para quem vive num dos países mais desiguais do mundo, mas perante a força das ruas, o Governo acabou por recuar.

Ainda assim, quem sai às ruas na Colômbia, sai por vários motivos. A Colômbia viveu um conflito armado de mais de 50 anos que teria terminado em 2016 com a assinatura do Acordo de Paz entre as FARC e o Governo anterior, mas as várias ramificações do conflito, a economia de guerra em torno dele e a violência directa e estrutural permanecem. Desde esse ano houve 753 assassinatos de líderes sociais e, só em 2020, 66 massacres correspondentes a 255 assassinatos confirmados pela ONU, nomeadamente contra comunidades rurais, defensores ambientais e de direitos humanos, pessoas indígenas, afrodescendentes e sectores da esquerda.

Em resposta aos protestos desta semana, Iván Duque decidiu militarizar as ruas, pondo o Estado numa guerra desigual contra o seu povo. A 2 de Maio, um jovem DJ da cidade de Cali que denunciava a acção do Estado no Instagram acabou por transmitir em directo o assassinato de um activista de 21 anos, Nicolás Guerrero. O DJ reportou depois que havia sido hackeado nas redes sociais e recebido ameaças, acabando por fugir da cidade. Num dos meios de comunicação alternativos usados pela resistência, encontramos a fotografia do estudante Daniel Meléndez, que perdeu o olho direito quando se manifestava, sentado na sua cama de hospital com um cartaz que diz “lamento informar a polícia que com o olho esquerdo ainda vejo um futuro melhor para o meu país”.

As hashtags #paronacional e #SOSColombia mostram vídeos das atrocidades cometidas contra os colombianos sem lei nem razão, coleccionam provas e tentam gerar atenção para as vítimas que nunca terão uma capa de jornal em seu nome. Entre 28 de Abril e 4 de Maio, a ONG colombiana Temblores reportou 1443 casos de violência policial, pelo menos 814 detenções arbitrarias, 77 disparos de armas de fogo e 31 assassinatos por parte da polícia, 21 agressões nos olhos e dez vítimas de violência sexual por parte da força pública. As redes sociais dizem #UribeDioLaOrden, indicando que é Alvaro Uribe, ex-presidente da ultra-direita, quem realmente manda no país e ordena os vis ataques.

Enquanto o mundo olha para o país do lado e escolhe ignorar as violações de direitos humanos que se vivem na Colômbia, a violência e a impunidade continuam. García Marquez já nos deu a lição: quando Santiago Nasar saiu de casa naquele dia, sabia bem que a morte o esperava, sabia-o toda a gente. Os colombianos são o nosso Santiago, não os deixemos morrer.

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