Toda a criança quer viver em família – os colos da lei

Acolher uma criança em nossa casa, seja qual for a capa legal que usemos, é um passo de gigante para a nossa elevação civilizacional, ao som dos mecanismos dos afectos, aqueles que, como nos ensinou António Alçada Baptista, irão moldar o nosso devir e cimentar as âncoras de segurança de qualquer Criança.

1. Já por aqui defendi que toda a criança precisa de um colo seguro a que se vincule e de uma parentalidade positiva, viva e militante, que alie doses de ternura, firmeza e bom trato.

Na promoção de direitos e na protecção da criança em perigo deve ser dada prevalência às medidas que a integram numa família – ou seja, na lei já não se fala “na sua família”, mas apenas em “família”, seja ela qual for, desde que enriquecedora e nutritiva do seu corpo e do seu espírito.

No fundo, o que se quer é dar o primado à vivência em família em detrimento da colocação de uma criança em acolhimento residencial.

O princípio da prevalência da família terá que ser entendido não no sentido da afirmação da prevalência da família biológica a todo o custo, mas sim como o assinalar do direito sagrado da criança à família, seja ela a natural (se for possível, devendo, neste campo, o Estado ser capaz de acompanhar as famílias biológicas, ajudando-as a superar o perigo em que vivem as suas crianças), seja a adoptiva, reconhecendo que é na família que a criança tem as ideais condições de crescimento e desenvolvimento e é aquela o centro primordial de desenvolvimento dos afectos.

2. Mas uma criança pode viajar para o colo de outras pessoas sem ser pela adopção – existem outros caminhos, menos radicais, que podem até coexistir com alguma parte do exercício das responsabilidades parentais ainda nas mãos da progenitura biológica.

E esses caminhos são trilhados pela legislação portuguesa – podemos estar a falar de limitações do exercício das responsabilidades parentais, de tutelas, de apadrinhamentos civis ou de medidas de promoção e protecção.

3. O acolhimento familiar de crianças está previsto como uma das medidas protectivas aplicáveis pelas Comissões de Protecção e pelos Tribunais aquando da constatação de que uma criança está em perigo.

E sabemos que este é um momento charneira neste país – a lei quer que as crianças até aos 6 anos vivam em famílias de acolhimento se tiverem de ser separadas de seus pais, de forma provisória.

Esta medida do acolhimento familiar apresenta imensas vantagens e benefícios em relação ao acolhimento residencial, como por exemplo, o permitir à criança/jovem a vivência numa família estruturada e equilibrada, em oposição ao acolhimento residencial onde, inevitavelmente, as relações individualizadas ficam seriamente comprometidas e onde não existe um modelo familiar que a criança/jovem possa vivenciar e modelar-se; mas sim um modelo institucional, com enorme rotatividade de cuidadores, rotinas e actividades (quase) sempre de carácter grupal e onde o espaço íntimo – pessoal e relacional – é bastante difícil de ser promovido.

Contudo, este último não deve ser diabolizado – vai, infelizmente, continuar a ser necessário para algumas situações, devendo ser apoiado a elevar a sua acção e capacidade de actuação cada vez mais especializada e orientada para objectivos terapêuticos, com equipas mais preparadas e apoio à supervisão e formação, alteração dos rácios criança/cuidador, tal se conseguindo também com a reformulação dos apoios e dos projectos de intervenção.

Já temos leis e portarias que regulamentam a lei, venham agora as manifestações de vontade dos cidadãos anónimos que densifiquem e multipliquem as bolsas de famílias de acolhimento – neste momento, com números muito baixos a rondar os 2,7% – que possam receber em suas casas as nossas crianças em perigo, fazendo delas a sombra dos seus dias e não apenas um lugar a mais nas suas mesas.

Há que louvar o esforço recente, neste particular, da SCML e do ISS.

Aguardamos melhores números.

4. Não nos esqueçamos de uma outra providência tutelar cível que pode albergar uma criança ao colo e à sombra da lei.

Falo do Apadrinhamento Civil, regulado, em termos substantivos e processuais, pela Lei n.º 103/2009, de 11 de Setembro (diploma já revisto pela Lei n.º 141/2015, de 8/9).

A lei em causa está regulamentada pelo DL n.º 121/2010, de 27/10, alterado pela Lei n.º 2/2016, de 29/2.

É um instituto para a vida, não cessando aos 18, 21 ou 25 anos, tal como uma medida de promoção e protecção, e é mais ampla que a tutela e menos ampla que a adopção, criando uma relação para-familiar apenas baseada no afecto e sem qualquer remuneração.

A ideia é manter os pais que são minimamente capazes na vida dos seus filhos: só que essas crianças precisam de mais do que têm, carecendo de mais afecto e segurança. Não é um “em vez de” mas um “a mais”.

E a criança, em vez de estar entregue a uma casa de acolhimento, pode ter uma família – os padrinhos – que fica com a parte maior do exercício das responsabilidades parentais. E os pais continuam a ser os pais, ainda com a titularidade dessas responsabilidades, mantendo um núcleo de direitos.

E também pode ser uma solução para prevenir a residencialização de crianças em casas de acolhimento, levando a que haja gente idónea que as receba no seu lar, embora não como “filhos legais”, e que lhes proporcione um continuado e mais perpétuo acolhimento familiar que, já sabemos, é tão gratificante para o desenvolvimento de qualquer ser humano.

A providência tutelar cível em causa aí está – e desde há dez anos – no menu das respostas ao perigo em que pode viver uma criança, e quer ser bem aplicada.

Continuo a acreditar que o Apadrinhamento Civil veio para ficar – é mais um instrumento jurídico que atribui a confiança de crianças a terceiros, com vínculo afectivo e legal.

Mais um. De muitos.

Pode não ter até agora acolhido muitas crianças.

Contudo, existe e a ele pode ser lançada mão sempre que a situação do concreto João ou da concreta Maria assim o exigir.

Aguardemos também melhores números e estatísticas no futuro.

E passem palavra, pois não duvido que nunca foi feito qualquer esforço estatal real para publicitar este instituto pensado e construído no “meu” saudoso Observatório Permanente da Adopção de Coimbra.

5. Passámos o mês de Abril, o pensado para invocar a problemática dos maus tratos à infância.

A condição da Criança – assumindo-se numa cultura própria precisamente pelo facto de ser diferente em idade e desenvolvimento/maturidade – vive muito acima das ideias político-partidária da nossa polis. É um imperativo categórico que se impõe à nossa Civilização como parte integrante dela.

Assumamos de vez que:

  • As crianças são titulares de pleno direito no que se refere aos direitos fundamentais nos termos da Lei internacional e em especial do direito europeu (e aqui há que falar, com toda a propriedade, de direitos humanos do cidadão chamado Criança);
  • As crianças possuem direitos específicos relacionados com as suas necessidades e interesses particulares, devendo tais direitos ser lidos à luz da sua própria Cultura de Criança e nunca sob uma perspectiva adultocêntrica, assumindo nós que a diferença entre a criança e o adulto não é quantitativa mas qualitativa: a criança não sabe menos, apenas sabe outra coisa;
  • Os pais, tutores, acolhedores, padrinhos e outros representantes e prestadores de cuidados, desempenham um papel fundamental na criação das condições que permitam que as crianças desfrutem dos seus direitos, tanto na sua vida privada como no domínio público, participando activamente na definição do seu estatuto jurídico e acedendo amigavelmente à Justiça, não as devendo coisificar ou instrumentalizar em prol de objectivos estranhos à dignidade das mesmas;
  • De acordo com as normas internacionais emanadas de diferentes organismos, o sistema judiciário português deve assegurar que as medidas de promoção e protecção, as tutelares cíveis e as tutelares educativas aplicadas a crianças e jovens são cumpridas na ‘perspectiva de efectivação dos Direitos da Criança’, tal como foram gizados pela Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, ensinada há largos anos no CEJ;
  • Existe a necessidade imperiosa de prossecução de uma intervenção cada vez mais integrada e multidisciplinar a favor da criança/cidadão que se encontre em risco, em perigo, em conflito com a lei ou a viver litígio parental em sede de providência tutelar cível.

6. Vamos continuar em clima de tolerância zero – pensar e agir futuramente como se estivéssemos sempre em estado de emergência, porque proteger crianças em perigo é, de facto, uma tarefa de emergência e como tal deve ser encarada (fazer menos piscinas e menos estradas e dedicar mais recursos financeiros para este desiderato).

Estando atentos todos os dias, todos os meses e todos os anos, agiremos com a noção clara e indesmentível de que as crianças não se importam com o quanto tu sabes até saberem o quanto tu te importas (com elas).

A sociedade saberá erguer-se e permanecer solidária – temos todos de estar permanentemente acordados pois essa é a nossa luz, aquela que ilumina os casarios e vigia as crianças no seu sono.

O sistema tem a sua porção de Poder na mão, mesmo trabalhando com consensos e consentimentos bem expressos (o caso das CPCJ).

Mas não tenhamos ilusões – o Poder só é necessário para fazer o Mal.

Para fazer tudo o resto, muitas vezes, basta o Amor (um outro nome para o afecto, um valor jurídico constitucional em Portugal).

Porque acolher uma criança em nossa casa, seja qual for a capa legal que usemos, é um passo de gigante para a nossa elevação civilizacional, ao som dos mecanismos dos afectos, aqueles que, como nos ensinou António Alçada Baptista, irão moldar o nosso devir e cimentar as âncoras de segurança de qualquer Criança.

Sugerir correcção
Comentar