O rastro negro dos navios: o perigo das meias verdades

No que respeita à emissão de gases de estufa, atacar o transporte marítimo é o que os ingleses chamam “barking up the wrong tree”.

No dia 30 de abril foi exibido no Jornal da Noite da SIC um documentário intitulado “O rastro negro dos navios”. É um documentário devastador sobre o impacto ambiental do transporte marítimo. Lamentavelmente, é um documentário claramente tendencioso, que utiliza o velho truque das meias verdades para influenciar erradamente a opinião pública. Vejamos porquê.

A medida utilizada para avaliar o impacto no aquecimento global causado pela emissão de gases de estufa é o volume de dióxido de carbono equivalente (CO2e). Atualmente, esse volume cifra-se em 51 biliões de toneladas por ano. O dióxido de carbono é o principal componente, com 30 bi tons, sendo acompanhado por outros gases, designadamente metano e óxido nítrico, que têm efeitos muito mais gravosos. Por exemplo, o metano tem um impacto 120 vezes maior do que o dióxido de carbono. CO2e é o volume equivalente de CO2 que reflete a contribuição efetiva de todos os gases.

Segundo o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), o transporte marítimo emite 1,1 bi tons de CO2, sendo responsável por 3% do CO2e global. Apesar de ser, de longe, o meio de transporte mais utilizado, responsável por mais de 80% do comércio internacional, em termos de volume, o transporte marítimo emite sete vezes menos CO2e do que os restantes modos de transporte, como se mostra a seguir:

  • Veículos ligeiros: 47%
  • Veículos pesados: 30%
  • Transporte marítimo: 13%
  • Transporte aéreo: 7%
  • Transporte ferroviário e outros: 3%

É também importante referir que a principal fonte de CO2e é a indústria, com uma quota de 31%, sobretudo devido às siderúrgicas e cimenteiras, seguido da produção de eletricidade, com uma quota de 27%. O setor dos transportes (todos os modos) ocupa a quarta posição com uma quota de 16%, atrás da agropecuária, que tem uma quota de 19%.

Assim, no que respeita à emissão de gases de estufa, atacar o transporte marítimo é o que os ingleses chamam “barking up the wrong tree

Já na emissão de óxidos de enxofre, a crítica ao transporte marítimo é legítima, mas vem atrasada. Desde 1 de janeiro de 2020 que os navios em todo o mundo são obrigados a consumir combustível com muito baixo teor de enxofre (não mais de 0,5%) ou a utilizar meios mecânicos para purificar as emissões. Gás natural, que não tem enxofre, é cada vez mais uma alternativa preferida na construção de novos navios. Além disso, os principais portos em todo o mundo estão equipados ou em vias de ser equipados para fornecer energia elétrica aos navios acostados, eliminando totalmente a necessidade de geradores de bordo. Os portos de Lisboa e de Sines são exemplos dessa transformação.

Por último, é importante notar que o setor dos transportes marítimos é o único sector da economia em que fornecedores, consumidores e financiadores se organizaram de forma responsável e voluntária para tomar medidas concretas para atingir o difícil objetivo estabelecido no Acordo de Paris de 2015: limitar o aumento da temperatura média global até 2ºC acima dos níveis pré-industriais e prosseguir esforços para reduzir esse aumento para 1,5ºC. Merecem especial referência três iniciativas:

  • Getting to Zero Coalition”: tem por objetivo operar navios nas rotas de longo curso, com emissões neutras (Zero Emission Vehicles ou ZEV) até 2030.
  • Sea Cargo Charter”: promove a descarbonização do transporte marítimo aplicando critérios ambientais no afretamento de navios.
  • Poseidon Principles”: promove a descarbonização do transporte marítimo aplicando critérios ambientais no financiamento de navios.

Em conclusão, o ataque aos transportes marítimos por parte dos autores do documentário “O rastro negro dos navios” só se compreende por ser um alvo fácil e porque, nas sábias palavras de Mark Twain, “A little knowledge is a dangerous thing.”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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