PT 2030, a política da administração e a administração da política

O risco de atirar fundos para cima dos problemas e dos grandes projetos de obras públicas é muito alto. A administração da política pública está, por isso, obrigada a encontrar pontos de acostagem onde se cruzem e conciliem as competências funcionais dos atores privados com as competências institucionais dos atores públicos.

As grandes transições da próxima década – climática, energética, ecológica, digital, laboral, demográfica, migratória, sociocultural – pela enorme turbulência que irão desencadear e, muito em especial, a transformação digital pela desintermediação política, institucional e administrativa que causará, estarão na origem de uma profunda reforma da política administrativa e de seus incumbentes respetivos. Vejamos os dois lados do problema, a política da administração e a administração da política.

A política da administração

Desde a entrada na CEE em 1986 que a política da administração se confunde com a agenda, as elegibilidades e as regras dos quadros comunitários de apoio (QCA), ou seja, o programa nacional de investimento é, na sua grande maioria, financiado pela programação plurianual de fundos europeus, um ritual político que se repete de sete em sete anos e que, desta vez, faz convergir o PT 2020 ainda em execução (11 MM), o PRR 2026 em vias de aprovação (16 mil milhões), o PT 2030 em discussão (30 MM) e outros programas especificamente europeus. No total, para a década 2020-2030, estaremos muito próximos dos 60 MM euros, ou seja, cerca de 6 MM/ano de fundos europeus (3% do PIB), aos quais se podem ainda adicionar alguns empréstimos comunitários, por exemplo, para a capitalização e inovação de empresas.

Os documentos que já conhecemos – PT2020, PRR e PE, programa de estabilidade – são algo conservadores no modo como tratam a programação e o planeamento, pois não se afigura uma tarefa fácil executar por ano cerca de 6 MM euros de fundos europeus, sabendo nós a experiência de anos anteriores e o labirinto de procedimentos que são necessários entre a abertura de um concurso e o encerramento de um investimento.

Quanto à natureza dos impactos, falta, em minha opinião, um middle level concept que nos remeta para um plano mais operacional e operativo, que não se limite a uma projeção macroeconómica difusa e agregada ou a uma avaliação custo-benefício de grandes projetos de obra pública. Uma vez que estamos perante grandes transições e transformações durante toda a década é imperioso, por um lado, acautelar a equidade dos efeitos de rede e aglomeração sobre a geoeconomia regional e, por outro, revisitar as nossas cadeias de valor com potencial para serem exportáveis e perguntar de que modo os investimentos para a década aumentam a sua produtividade e competitividade.

Em conclusão, para lá do enunciado de vários planos de ação – climático, energético, ecológico, digital, socio-laboral - a política da administração para a próxima década não nos assegura que serão resolvidos ou mitigados os défices estruturais da economia portuguesa que deixámos acumular nos últimos 20 anos, a saber:

- O binómio produtividade-competitividade (para evitar o empobrecimento dos que trabalham);

- A poupança interna e a capitalização de PME (para promover a inovação e o redimensionamento empresarial);

- A especialização das cadeias de valor e a sua internacionalização (o crescimento substancial das exportações muito para lá dos 43% do PIB de hoje);

- A redução de custos de contexto e o incentivo ao IDE (reforma da justiça, fiscalidade e administração pública);

- O plano de reforma da divida pública e privada (que nos pode estrangular até ao final da década, com mais TAP e NB à mistura);

- O capital humano e o plano de literacia digital avançada (a escola das arte e tecnologias do século XXI e uma revolução na formação profissional);

- A equidade e a efetividade das políticas de coesão territorial (para impedir mais fluxo migratório para o litoral e o exterior)

No final, são os programas e os financiamentos europeus e as instruções verticais do modelo-silo de administração central que escolhem os territórios e determinam a sua agenda. 35 anos depois da nossa entrada na CEE o país está claramente melhor, mas uma parte significativa dos portugueses continuará a lutar para não ficar mais empobrecida.

A administração da política PT 2030

Insisto neste ponto, os 6 MM de euros por ano não têm, manifestamente, um sistema operativo publicamente legitimado e que responda aos 4E da política administrativa, a saber, a eficácia, a eficiência, a equidade e a efetividade. O risco de atirar fundos para cima dos problemas e dos grandes projetos de obras públicas é muito alto e os efeitos colaterais de risco moral, free raider e corrupção poderão ocorrer sem surpresa. A administração da política pública está, por isso, obrigada a reinventar-se e a encontrar pontos de acostagem onde se cruzem e conciliem as competências funcionais dos atores privados com as competências institucionais dos atores públicos. Eis alguns desses pontos de acostagem a um nível intermédio:

- O mapeamento das cadeias de valor com maior potencial e sua reorganização, sejam as de ciclo mais curto no plano interno ou as de ciclo mais aberto no quadro do mercado único europeu;

- A organização de redes de cooperação e extensão empresariais tendo em vista o redimensionamento das PME e o acolhimento de startups;

- A organização de redes de ciência e tecnologia e sua conexão com as redes empresariais;

- A organização de comunidades locais de energia e a gestão de programas de eficiência energética;

- A organização da inteligência coletiva territorial, seja através das smart cities ou das smart regions e a oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns;

- A organização de sistemas de economia geolocalizada, por exemplo, os sistemas agroalimentares (SAL), os sistemas agroflorestais (SAF), os sistemas agroturísticos (SAT), os sistemas agropaisagísticos (SAP), entre outros;

- A organização de redes e plataformas de economia circular e regenerativa;

- A organização de redes e plataformas de prevenção, mitigação e adaptação da natureza e ambiente;

- A organização de redes e plataformas de prevenção e monitorização de riscos globais;

- A organização de redes e plataformas para o 4.º setor, em redor dos bens comuns da cultura, solidariedade social e formação ao longo da vida

Estes exemplos de redes e plataformas mostram-nos à evidência que é necessário um incumbente acreditado, se quisermos, um ator-rede com competências de coordenação em matéria funcional e institucional. Nesta fase só a CCDR ao nível NUTS II está em condições de desempenhar esse papel, mas outras soluções podem e devem ser exploradas em redor, justamente, daqueles pontos de acostagem.

Notas finais

As grandes transições da década de 2020-2030 não seguirão, muito provavelmente, um guião conhecido e este facto relevante mina a segurança da política administrativa e a estabilidade institucional dos incumbentes respetivos. Tudo parece estar em causa e nunca como agora a reforma do Estado-administração foi tão necessária.

Muito mais do que o governo e a governação, confinados pela lógica binária convencional do Estado-administração versus o destinatário-utente, temos, hoje, em agenda, o tema do Estado em rede e a governabilidade em território aberto, onde as comunidades inteligentes, as plataformas colaborativas e os atores-rede desempenham um papel cada vez mais fundamental. Ou seja, com a revolução digital e a sociedade em rede, um estado-administração omnipresente que está sempre a exigir conformidade já não faz muito sentido. Um território será sempre um campo de forças onde o tempo sedimenta uma estrutura e uma dinâmica social, logo, a decisão administrativa unilateral será progressivamente substituída por uma deliberação participativa e colaborativa entre administração pública e comunidades inteligentes representativas.

Na próxima década, entre o excesso de centralismo e de localismo, a inovação político-administrativa acontecerá a um nível intermédio de administração do território de acordo com o seguinte guião:

- A identificação dos sinais distintivos do território e seus pontos de acostagem;

- A identificação das competências funcionais e institucionais correspondentes;

- A constituição de uma comunidade inteligente e do seu interesse comum;

- A constituição de uma plataforma colaborativa e o seu ator-rede

Como já referi, os pontos de acostagem são muito variados e quanto maior for a a sua ligação, maior será a capilaridade do território e maiores serão as economias de rede e aglomeração. Um bom pretexto ou sinal distintivo, uma rede ou comunidade inteligente, uma placa giratória ou plataforma digital, um ator-rede ou agente principal, eis tudo o que é necessário para manter em pleno funcionamento o sistema operativo e a geoeconomia de uma região.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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