Jorge Humberto

A Luísa vivia em adoração eterna ao seu marido e falava directamente com ele quando eu fazia um disparate, como se ele estivesse a acompanhar tudo. “Estás a ver isto, Humberto?”

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"Até que, aos poucos, a Luísa se foi esquecendo. Esquecia-se das chaves, esquecia-se dos dias em que tinha de ir trabalhar" Gianluca Carenza/Unsplash

A Luísa era a empregada que trabalhava em minha casa, na minha infância. Com os meus pais a trabalhar fora, eu passava os dias inteiros na sua companhia. Foi ela que ouviu a minha primeira palavra, facto que orgulhosamente contava a qualquer um, descrevendo o meu inclinar de cabeça, a forma que os meus lábios tomaram e os sons que foram emitidos baixinho — “Mamã!” — com tal riqueza de pormenores que, apesar de já ter ouvido a história mais de um milhão de vezes, eu ficava sempre presa. Ela sentia tanto orgulho por ter vivenciado isso como eu sentia ao ouvi-la relatar o seu espanto por eu ter começado a falar tão cedo.

Foi a Luísa que dançou comigo todas as minhas primeiras danças: “O bailarico saloio não tem nada que saber, não tem nada que saber”, cantava ela, de peito erguido, mãos ao alto, intercalando a música com o estalar dos dedos e um sapatear ritmado e giratório: “É andar com um pé no ar, outro no chão a bater, outro no chão a bater.” Eu não me fartava. Pedia mais e mais e juntava-me a ela, alegre e feliz.

Conversávamos muito, isto é, eu ouvia-a falar o dia inteiro. Ela ensinou-me a dobrar as cuecas, a rezar o pai-nosso e a compor o meu enxoval, tarefa à qual se entregava com todo o esmero. Eu não fazia ideia do que era um enxoval, afinal tinha três anos, mas a gaveta que lhe era reservada ia-se enchendo, ano após ano, sem me ser dada qualquer explicação, para além da importância inquestionável daqueles lençóis, guardanapos e sacos de pão para a minha vida. Ela bordava as peças e emocionava-se de tal forma com aquilo que eu jamais fui capaz de ceder a gaveta do enxoval a outros elementos de vestuário. Mantive-a intacta durante anos, conservando-lhe a solenidade.

Sabia tudo da vida dela. Jorge Humberto era o seu marido falecido e referência omnipresente nas suas histórias. Jorge Humberto era elevado a um estatuto angelical. Sempre que falava dele, a Luísa beijava o seu colar de prata, que tinha duas medalhas com um J e um H gravados. A primeira história de amor que ouvi e com a qual vibrei intensamente não foi a de Romeu e Julieta nem a de Dom Quixote e Dulcineia. Foi a da Luísa e Jorge Humberto. Jorge Humberto ia buscá-la na sua lambreta e atravessavam o concelho de Loures de cabelos ao vento, a alta velocidade. A Luísa tinha medo de andar de lambreta, mas Jorge Humberto prometeu-lhe que jamais deixaria que lhe acontecesse alguma coisa de mal. Jorge Humberto era um excelente dançarino. Jorge Humberto, às vezes, bebia de mais e adormecia, mas merecia porque trabalhava muito. Jorge Humberto cheirava sempre bem. Jorge Humberto era esse digníssimo cavalheiro que jamais ousou dar-lhe sequer um beijo na boca, segundo relatos da própria, coisa que com o passar dos anos eu fui achando mais e mais estranha, especialmente porque eles tiveram um filho. “Ó Luísa, isso não é possível!”, reclamava eu, quando já era crescida o suficiente para exigir uma versão actualizada e convincente da história. “Mas foi”, respondia, peremptória.

A Luísa vivia em adoração eterna ao seu marido e falava directamente com ele quando eu fazia um disparate, como se ele estivesse a acompanhar tudo. “Estás a ver isto, Humberto?” Ela era guiada pela certeza de que se iriam reencontrar, quando morresse. De tanto que eu ouvia falar de Jorge Humberto e do seu charme, tinha uma imagem de um verdadeiro actor de Hollywood na cabeça. Um dia, quando a Luísa tirou da carteira uma fotografia dele dos tempos da tropa e eu deparei com a imagem real daquele que até então habitava apenas os meus sonhos, fiquei profundamente desiludida. Mas admirei ainda mais a Luísa, pela devoção do seu amor.

Um dia, a Luísa confessou-me que gostava tanto de mim como do filho, como se precisasse de tirar aquilo do peito, e eu confessei-lhe que gostava tanto dela como das minhas avós. Não ousei elevá-la à categoria dos meus pais, há alguma coisa de sagrado nas hierarquias da infância, em que os pais estão em primeiro, inquestionavelmente, sob pena de o mundo cair, mas talvez estivesse muito próximo disso mesmo, apesar de nem me ter dignado a reflectir sobre isso, para não remexer no que já estava arrumado na minha cabeça de cinco anos.

Dos dias mais felizes da vida da Luísa, exceptuando aqueles que viveu ao lado de Jorge Humberto, foi o dia da minha primeira comunhão. Lembro-me de a ver a limpar as lágrimas, por baixo dos óculos, enquanto eu carregava as uvas, dever que me competia, em direcção ao altar.

Com a separação dos meus pais, a Luísa ficou a trabalhar em casa do meu pai e a minha mãe encontrou uma nova empregada, com a qual eu estava destinada a passar a maioria dos dias. Escusado será dizer que não aceitei bem a substituição. Não havia bailarico, nem enxoval, nem Jorge Humberto. Mas a Gracinda fazia óptimas torradas. Claro que sem alma e sem amor, mas com a dose exacta de manteiga. Maldita a hora em que confessei à Luísa, nas suas inúmeras tentativas de sacar informação acerca da Gracinda e da natureza da nossa relação, que não gostava nada dela, mas que tinha de admitir que as suas torradas não eram más. Foi uma punhalada tão forte no coração da Luísa que acho que nunca a reconquistei totalmente. Ficou semanas sem me dirigir a palavra e, quando o fazia, era monossilábica. A partir daí, a autocomiseração era constante e deixava sempre a adenda: “De certeza que a Gracinda faz melhor”, em relação a tudo. Foi uma mancha que jamais foi apagada.

Até que, aos poucos, a Luísa se foi esquecendo. Esquecia-se das chaves, esquecia-se dos dias em que tinha de ir trabalhar. Esquecia-se de ir às compras, esquecia-se dos horários dos comboios. Esquecia-se de tudo o que tinha feito naquele dia, mas não se esquecia de Jorge Humberto.

Teve de deixar de trabalhar devido à doença de Alzheimer. Mas, às vezes, esquecia-se e aparecia lá em casa. Já se tinha esquecido dos bailaricos e do enxoval. Mas ainda pudemos falar do Jorge Humberto. Era como se eu o conhecesse também, depois de tantos anos, e o relembrássemos juntas. Sorríamos, ao imaginá-lo encostado à lambreta, debaixo da sua janela, à espera que ela descesse. Jorge Humberto. A única âncora que ainda nos unia.

Um dia, passado algum tempo, voltámos a ver-nos. Ela não se lembrava de mim. Não se lembrava de que me tinha embalado no colo. Não se lembrava da minha primeira palavra, de me fazer as primeiras sopas, de me dar o biberão, de me ensinar a dobrar cuecas, nem da minha primeira comunhão. Tentando controlar o choro, falei-lhe do Jorge Humberto, na esperança de ainda termos esse elo. Nos seus olhos pequeninos e brilhantes, percebi que não fazia ideia do que eu estava a falar.

Morreu pouco tempo após esse dia em que eu senti que tinha morrido para ela. Confesso que guardo a esperança secreta e um tanto absurda de que, na sua morte, se tenha relembrado de tudo. Excepto das torradas da Gracinda, claro.

Se tudo for como ela sempre garantiu, estará neste momento a andar de lambreta no céu, atrás do Jorge Humberto. E talvez lhe esteja a contar, na sua forma tão profícua, as histórias todas que vivemos. E agora talvez seja o Jorge Humberto a dizer: “Ó Luísa, isso não é possível”, e ela a garantir que foi mesmo assim, que foi à frente dela que uma menina inclinou a cabecinha, fez beicinho e que começou a falar aos nove meses.

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