Ó de Mira. Aqui mora gente. Se fosses só três sílabas

Odemira não fica longe de Lisboa, fica à exata distância que liga políticas e práticas na realidade que é a nossa. Pode parecer que é longe, mas nem é tanto assim: é a exata distância da vontade de quem pode.

Nos últimos dias Odemira entrou no espaço mediático com grande estrondo. De repente, os “estrangeiros” são os causadores de desgraças múltiplas. Os mesmos que há muitos anos apanham, com cuidado e paciência, frutas e frutos (da cor do sangue que nos une a todos enquanto humanos), são agora os causadores do cerco a que duas freguesias se sujeitam nas próximas semanas. Dei por mim a pensar que nada disto é inesperado ou novo, mas que revela o que de pior o país tem para oferecer: assobios para o lado e “desenrascanço”. Tivéssemos nós um plano para a integração de imigrantes, um plano estratégico para as migrações ou um Plano Municipal para a Integração de Imigrantes em Odemira e nada disto ocorreria. Tivéssemos nós uma Secretaria de Estado das Migrações ou um Alto Comissariado para as Migrações e dormiríamos descansados sabendo que as autoridades estariam a construir um Portugal respeitador dos Direitos Humanos. Bem sei que algo terá sido feito mas é pouco, demasiado pouco.

Sim, há muito tempo que se ouve falar de exploração desumana de trabalhadores do sudeste asiático ou do subcontinente indiano. Sim, há muito tempo que há histórias sobre a presença de entidades mafiosas que controlam o tráfico ou a exploração de mão de obra. Sim, há muito tempo que se fala de empresas na hora que desaparecem na hora de pagar impostos e contribuições (e, tantas vezes, na hora de pagar salários). Sim, há muito tempo que há aqui uma adaptação dos famosos subempreiteiros das Hiaces de há umas décadas ou das praças de jorna do 24 de Abril. Há muito tempo que há apenas suor e trabalho para oferecer em troca de pão para os pobres. Há muito tempo que o trabalho é mais barato que os direitos de quem trabalha, que se retira da boca o alimento com que se mata a fome lá longe nos Himalaias ou em Gujarat. Há muito tempo que faltam a paz, o pão, habitação, saúde, educação. Esperar tantos anos torna tudo mais urgente. Sim, há muito tempo que organizações da sociedade civil alertam as autoridades para o que se passa neste território no sudoeste do Portugal soalheiro que se fez misto de agronegócio e turismo. Sim, há muito tempo que Odemira faz parte das línguas que se falam no Nepal, na Índia, no Sri Lanka ou no Bangladesh. Sim, há muito tempo que era ensurdecedor o silêncio de quem tinha poder e autoridade e preferiu não atuar. A inércia pode matar.

Foi preciso um vírus para nos acordar da dormência? Foi preciso um grito ensurdecedor para nos fazer sair da letargia em que temos permanecido? Se ao menos tivéssemos ganho prémios do tipo MIPEX como um país de boas políticas migratórias talvez estivéssemos agora a lutar por boas práticas de acolhimento. Odemira não fica longe de Lisboa, fica à exata distância que liga políticas e práticas na realidade que é a nossa. Pode parecer que é longe, mas nem é tanto assim: é a exata distância da vontade de quem pode. Dos telejornais dos últimos dias temos uma janela para as Freguesias de São Teotónio (que agora agrega a Zambujeira do Mar) e de Longueira/Almograve. Estufas e Sol. Contentores e Sol. Habitações sobrelotadas e Sol. Frutos e frutas e Sol. Água e Sol. Mar e Sol. Vírus e Sol. Colheitas e Sol. Sol e Sombra, na verdade. Mais sombra e menos sol nos últimos anos.

O raio do vírus apareceu no meio da época de colheita em que os trabalhadores se tornam indispensáveis, em que os nepaleses ou indianos fazem parte da linha da frente. Visto de Kathmandu, Odemira parece ser só Sol. Visto de Lisboa parece ter estado à sombra. Anos de terra de ninguém, sem controlo efetivo trouxeram-nos ao século XXI.

Sim, bastava que os projetos piloto de integração de imigrantes (que os houve) tivessem sido apoiados mais tempo, com mais fundos, com mais estratégia. Bastava que os técnicos tivessem sido deslocados de modo permanente para Odemira em vez de executarem missões temporárias. Bastava que o SEF tivesse criado uma delegação permanente nesta zona do país. Bastava que o CLAIM – Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes de Odemira fosse um serviço descentralizado do Estado português e não um protocolo ou um projeto temporário. Bastava que os Centros de Saúde tivessem os técnicos respetivos que fazem falta e sentido. Bastava que os da linha da frente fossem à frente na linha da vacinação. Mas nada disso aconteceu, sobretudo, por inércia. É preciso mais Estado em Odemira. É preciso melhor Estado em Odemira. Recordo o Acordai de Fernando Lopes-Graça: “Acordai. Acordai. Homens que dormis. A embalar a dor. Dos silêncios vis.” Termino, parafraseando Alexandre O’Neill: “Ó Odemira, se fosses só três sílabas.”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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