O medo de estarmos a criar monstros

Quando são os avós a assistirem a este cenário, enervam-se duplamente, porque se põem no lugar dos adultos e no das crianças. Quando vêem um neto assustar o pai ou a mãe, só têm ganas de o pendurar pelos pés.

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@designer.sandraf

Ana,

Sei que te vou irritar e, no entanto, não resisto. Mal acabei de escrever esta frase, comecei a rir-me porque é tal e qual aquilo que deve passar na cabeça dos nossos filhos e adolescentes, de cada vez que nos provocam. Adiante, também tenho direito a regredir de vez em quando, e chegados aqui não há voltar atrás.

Directos ao assunto: os avós queixam-se de verem os filhos manipulados pelo medo das explosões dos netos. Provavelmente porque também foram ou ainda são manipulados pelos próprios filhos, e odeiam-se sempre que se deixam assustar por eles. Repara que não ponho o ónus na criança — ela usa os poderes que tem, mas suspeito que a culpabilidade que vem com a vitória não compensa o ganho.

Vou dar o corpo às balas, falando da minha experiência como mãe. Não reagi às vossas birras sempre da mesma maneira. Nem com o mesmo filho, ao longo dos anos. Tendencialmente cedi muito mais com aqueles que reagiam com uma luta infindável, chantagem emocional, ou amuos intermináveis. Fugi a repreender, a exigir e a pedir mais (como devia) aos que não cumpriam à primeira, nem à segunda, nem à terceira. E, pior, preferi muitas vezes fazer eu, só para não me enervar (enganando-me a mim mesma com o argumento de que era uma escolha livre). O custo de tudo isto era grande: cá dentro não conseguia apagar completamente a raiva por aquele que me fazia bullying, e contra mim mesma por ter sido “fraca”, e por ter medo de estar a criar um monstro. Felizmente, com o tempo, vamos todos aprendendo a mudar o registo. Ou mais ou menos.

Mas quando são os avós a assistirem a este cenário, enervam-se duplamente, porque se põem no lugar dos adultos e no das crianças. Quando vêem um neto assustar o pai ou a mãe, só têm ganas de o pendurar pelos pés — ainda por cima a magoar um querido filho/a — mas, simultaneamente, apetece-lhes fazer o mesmo aos pais, que andam ali em pezinhos de lã, cheios de medo de detonar o seu filho/granada.

Muito sinceramente, acho que este jogo de forças não é bom para nenhuma das partes. Nem tão pouco para os irmãos que, até para ganharem quota de mercado, passam a ser uns cordeirinhos.

Aguardo ansiosamente a tua opinião.


Querida Mãe,

Do meu ponto de vista, que bom que não tratou as birras dos seus filhos todas por igual, que bom que soube perceber quando a guerra que teria que comprar só traria desgaste à relação e intuitivamente percebeu que no meio de birras não se aprende ou se ensina nada.

Que sorte que tivemos por ter mostrado flexibilidade e cedido quando não estávamos capazes de sermos nós, crianças, a ceder. Que privilégio que não tenha confundido a igualdade com uma solução igual para todos, mas que se calhar só ajuda um. Que bom que foi assim, porque nos deu a possibilidade de aprender (e acho que o tem visto nos seus filhos adultos), a sermos também flexíveis, a perceber que às vezes uns precisam de mais ajuda do que outros. Porque terá sido também por isso que crescemos a sentir que o seu amor por nós não estava condicionado a sermos sempre perfeitos ou a fazermos tudo o que a mãe queria ou precisava naquele minuto.

Mas que pena que o tenha feito com tantos sentimentos de culpa, que não tenha visto tudo isto como uma força e não como fraqueza. Que pena, que sentisse que estava a falhar, vivendo estes momentos com medo de um futuro trágico, onde cada birra cedida determinava quão monstros e disfuncionais íamos acabar por ser. Porque, aparentemente, eram profecias falsas que partiam do pressuposto que as crianças se tornam selvagens se não as obrigarmos, se as deixarmos “ganhar”.

Dito isto, sim... As birras e os meltdowns traumatizam. Quando há fases de grandes birras seguidas torna-se impossível não querer evitá-las, podendo cair numa fuga para a frente que não é boa para ninguém. Mas o que é necessário nessas alturas, não é de mais inflexibilidade ou culpa. O que é preciso é mudar a nossa lente e perceber que a criança necessita de ajuda a resolver um problema qualquer (que não é o comportamento, esse é só a consequência).

Temos de abandonar esta ideia de ceder e ganhar. É preciso entrar para a mesma equipa e procurar a causa, para conseguir uma solução realista e duradoura, que essa sim, eliminará a birra. E, entretanto (porque as coisas demoram tempo), temos que conhecer os nossos próprios limites e tomar consciência de que a nossa realização pessoal não pode passar só pelos filhos. E na medida em que formos capazes de fazer isto tudo, estaremos a dar-lhes ferramentas para lidar com os problemas, com menos explosões.

Ainda mais irritada comigo?

Bjs


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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