De uma voz por todas

Sim, estou a falar do assédio e das denúncias que estão a aparecer. Não, não vou pedir listas. Porquê? Porque, tal como na violência doméstica, não são as vítimas que devem ser julgadas.

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Mihai Surdu/Unsplash

O que há de surpreendente sempre que alguém tenta libertar-se de uma opressão não é que surjam os grupos dos mais papistas que o Papa, ululando por listas — é que tornem público esse seu posicionamento e não se sintam incomodados de cada vez que, depois disso, se miram ao espelho. Aqui estamos, num momento que deve ser libertador, revelador, ponto de viragem num cancro que tem minado a sociedade portuguesa como todas as outras, e não falta quem, por mais que pense, só consiga balbuciar.

Sim, estou a falar do assédio e das denúncias que estão a aparecer. Não, não vou pedir listas. Porquê? Porque, tal como na violência doméstica, não são as vítimas que devem ser julgadas — são os responsáveis pelo assédio, nomes entregues às autoridades para que o assunto seja julgado nos lugares próprios. E uso aquela expressão como eufemismo. Quem exige listas deveria era exigir que os nojentos se apresentassem e confessassem. Os canalhas que repetidamente tiraram e continuam a tirar partido das suas posições de poder para os seus jogos sujos. Os patifes que, a coberto da penumbra e da protecção de que gozam, coleccionam episódios indecorosos e regressam a casa como se fossem cidadãos exemplares. Os cobardes que não amarrotam apenas tecidos, ameaçam percursos profissionais com o argumento, tantas vezes já denunciado, de que “ou fazes isto ou não trabalhas mais aqui”. Grandes homens estes de pequenina virilidade. Náusea, revolta nas tripas, raiva: as vítimas vivem com isto e não esquecem o mal que lhes foi feito.

E se fosse ao contrário? Se fossem os homens a carregar a “obrigação” de pensar bem o que vestirem, se deviam usar perfume ou fazer a barba, antes da saída de casa para o trabalho ou um jantar, não fosse alguém pensar que estariam a encorajar alguma coisa? Se fossem os homens que precisassem de companhia numa rua à noite ou no regresso a casa a horas tardias? Se fossem os homens que, por estarem a divertir-se e beber um pouco mais do que o recomendável, corressem o risco de ser abordados por qualquer predador disfarçado de bem-intencionado, sabendo-se lá o que poderia acontecer depois?

Alguns ficam incomodados porque denúncias têm surgido de personalidades mediáticas. Isto só prova que nada aprendemos. O assédio está por todo o lado e demasiadas vezes a sociedade só dá por isso quando figuras públicas falam dos temas que muitos querem esconder. Querem listas? É fácil: pensem numa profissão qualquer, num estrato social qualquer, numa nacionalidade qualquer, numa religião qualquer. Aí vão encontrar disseminados os assediadores. Viajam connosco nos transportes públicos a caminho dos empregos, vão a igrejas e jantares com amigos, brincam com os filhos, ganham milhões nos seus lugares de domínio, lideram administrações, estão nas televisões, rádios e jornais a debitar opiniões tantas vezes sobre temas que desconhecem. Como na violência doméstica, estão por todo o lado. E, no entanto, por aí andam como se nada fosse, enquanto as vítimas se calam, enojadas e incrédulas com o que lhes acontece.

Não é popular este texto? Paciência. De uma vez por todas, é tempo de ser feita justiça. De uma voz por todas, é tempo de quem está em silêncio falar todos os dias sobre o assunto e de o assédio ser razão não para que as vítimas se calem e escondam, mas para que os assediadores tenham o que merecem: ser afastados dos lugares de poder que há demasiado tempo ocupam. Para que nunca mais repitam os asquerosos actos. Para que a hipocrisia não seja compensada. Para que o lixo humano vá para o lugar que merece e não para debaixo do tapete. E para que saibam que a impunidade chegou ao fim.

Há muito tempo, Sophia escreveu-o melhor que ninguém: “Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.”

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