Keila troca cartas com crianças que sonham ser cientistas

Nasceu em Cabo Verde, mas foi em Portugal que decidiu estudar. O interesse pela ciência já era antigo, assim como o hábito de escrever. Hoje, através das cartas, Keila Lima inspira jovens de vários países de língua portuguesa a serem cientistas. “A Keila de 15 anos iria adorar uma coisa destas”, assegura.

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Nelson Garrido

Quando era criança, Keila Lima não costumava receber cartas e as que escrevia eram destinadas a uma única pessoa — “o Pai Natal lá de casa”, papel desempenhado pela avó. A caligrafia não era (e continua a não ser) a melhor, mas os pedidos eram legíveis para quem se destinavam. A idade fez com que abandonasse esta tradição, mas o hábito de escrever sempre fez parte da rotina desta investigadora cabo-verdiana. “Tinha um diário até aos meus 16 anos. Sempre fui uma criança um bocadinho tímida e a escrita era uma coisa que eu fazia muitas vezes”, explica, em entrevista ao P3.

Aos 26 anos, as cartas voltaram. Podia dizer-se que foi algo inesperado, mas, na verdade, resultou da necessidade de manter contacto com a adolescente tímida que escrevia no diário. Em 2020, descobriu a iniciativa Cartas com Ciênciaprograma através do qual crianças dos países de língua oficial portuguesa e cientistas lusófonos de todo o mundo trocam correspondência durante um ano lectivo — e mergulhou novamente no mundo do papel e da caneta. “Identifiquei-me completamente com os ideais e com os valores que defendem para o programa e achei que a Keila de 15 anos iria adorar uma coisa destas.”

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Em Novembro chegou a primeira carta Nelson Garrido

Em meados de Novembro foi-lhe atribuída uma rapariga de 13 anos, natural de São Tomé, cujos interesses, recorda, “não eram muito ligados a tecnologias”. Advogada, médica ou actriz: como é que uma criança que gosta destas áreas se vai interessar por ciência? Ficou reticente, mas as dúvidas iniciais acabaram por se dissipar dias mais tarde, quando o correio trouxe a primeira de oito cartas cheias de questões à espera de resposta.

E o que escreveria a Keila de 15 anos a um cientista? “Como fui uma criança muito marrona, muito estudiosa, acho que perguntaria como é que as coisas funcionam a nível técnico”, conta.

Durante o percurso académico, recorda a primeira e única visita ao laboratório de Física quando estava a estudar as Leis de Newton, acontecimento que a marcou não pelo ambiente que sempre desejou conhecer, pelas respostas, batas brancas ou pipetas tão características dos cientistas, mas pela condição imposta pelos professores de “não mexer em muita coisa”. Na altura não gostou da ideia, mas hoje que faz parte do meio percebe a razão do pedido. “É um bocadinho mais difícil em Cabo Verde pela falta de material, os professores estimavam muito os laboratórios e não queriam que se mexesse muito, porque aquilo era difícil de arranjar.”

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Keila desenvolve softwares para exploração dos oceanos Nelson Garrido

Com 18 anos, através de um programa de integração dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), emigrou para o Porto para frequentar o curso de Redes e Sistemas Informáticos na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP). Hoje, com 26 anos, é engenheira de softwares para exploração dos oceanos, algo que descreve como “ouro sobre azul” para quem cresceu ligado ao mar.

Curiosidades para lá da ciência

Apesar de os interesses serem outros, as perguntas da adolescente são-tomense não são muito diferentes das de Keila. Para além do habitual “De onde és?”, seguiram-se várias questões sobre o trabalho da investigadora. De todas elas, saber como funcionam os robots subaquáticos foi aquela a que mais gostou de responder. “Percebi que ela se estava a interessar e a perceber a mensagem que eu estava a tentar passar em relação ao meu trabalho.” E em duas folhas escreveu-lhe: “Na água, temos os drones de superfície ou subaquáticos que servem para recolher dados em mares, rios e lagos. No ar, esses drones são utilizados para recolher dados à distância, sob a água.” E é assim que, aos poucos, se vai tornando uma inspiração para os jovens.

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Os robots subaquáticos podem ser utilizados para oceanografia, detectar minas ou em missões de procura e salvamento. Nelson Garrido

Já leu entretanto e também já respondeu à segunda carta. Desta vez, o número de perguntas aumentou, tornando-se cada vez mais difícil não ultrapassar o limite das três folhas.

Mas não só de ciência vive esta correspondência: perguntou-lhe se tinha filhos, questão com a qual não estava a contar. Mas a mais curiosa e à qual procurou responder da forma que acredita ser “a mais correcta possível” foi sobre a religião. “Os nossos ideais nem sempre têm de ser passados para a criança, temos de deixá-la decidir”, adverte. 

Uma inspiração para os jovens

Do outro lado a resposta tarda um pouco a chegar. Primeiro, a carta é digitalizada e enviada à professora e só depois chega à criança ou ao adolescente, por correio, momento que é celebrado em clima de festa. Abre-se e lê-se o conteúdo para a turma, porque, afinal, as dúvidas de uns podem ser as de outros. Trazem as tão aguardadas respostas, mas trazem também novas questões que serão respondidas pelo destinatário. Keila pergunta sobre a cultura são-tomense, a família da jovem, a profissão que a rapariga gostaria de ter e a possibilidade de estudar em Portugal. “Não nos focamos somente na parte científica. Isto serve muito para humanizar os cientistas e desmistificar a carreira de investigação”, explica.

Para além de tentar criar uma relação, as perguntas de Keila têm outro motivo: curiosidade pela cultura que, embora diferente da sua, transporta “um passado histórico em comum”. E também um interesse pelo futuro da criança, não fosse um dos principais objectivos do projecto incentivar os jovens a enveredar pelo mundo da ciência.

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Para a cientista, escrever cartas com ciência “é uma grande responsabilidade” e um “desafio constante”. Adaptar a linguagem científica às crianças requer treino, mas isso é o menor dos obstáculos. Sabe que o facto de ser mulher e estar inserida num meio onde há pouca representatividade é uma inspiração para a rapariga com quem “troca conversas” e admite que “ficaria muito feliz se ela enveredasse pela carreira científica”.

Conhecer o rosto por detrás da caligrafia é oportunidade que não descarta, mas só “no final da experiência, principalmente daqui a alguns anos”, para que não se perca a magia das cartas. “Gostaria de saber como é que ela está, que escolhas fez e se ajudei com alguma coisa ou não.” Por agora, o foco é a terceira carta, que não tarda muito a chegar. E esta trará resposta sobre se a rapariga gostaria de seguir os passos de Keila e vir estudar para Portugal.

Texto editado por Ana Maria Henriques

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