“A História é uma sucessão de feridas físicas e morais e temos de viver com isso”

David Martelo, coronel e historiador, lembra que Portugal “era um país pobre para poder ambicionar ter um império colonial”. E critica a reforma da estrutura superior da Defesa, dizendo que vai criar uma “coisa cabeçuda com pernas muito pequeninas”.

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David Martelo, historiador e coronel, lembra que Portugal “era um país pobre para poder ambicionar um império colonial” e defende o fim das “autoflagelações sobre o colonialismo”

Marcelo Rebelo de Sousa (M.R.S.) na sua intervenção no 25 de Abril disse que se devia discutir a guerra colonial sem álibis e omissões. Ao fim destes anos todos, que álibis e omissões ainda existem?
Uma vez que tenho feito vasta investigação sobre o assunto, parece-me que é um tipo de frases feitas de pessoas que têm lido muito pouco sobre o que se tem publicado acerca da guerra colonial. Estão publicados mais de 600 títulos sobre a guerra colonial e a maior parte foi escrita por antigos combatentes. Como tem havido uma diminuição intensa do estudo da História, cada vez que um assunto destes vem para a ribalta, as pessoas agarram-se a estes chavões, mas não têm fundamento para o fazer.

M.R.S. leu poucos desses livros, é isso?
Não, não. O Presidente está noutro plano. Ele foi extremamente hábil em ter aproveitado um tema que esteve muito recentemente em discussão, sobretudo devido ao falecimento do tenente-coronel Marcelino da Mata, e percebeu e muito bem que surgiram nessa altura posições extremamente surpreendentes, até do ponto de vista do bom senso histórico. E, portanto, como professor, quis utilizar a cerimónia do 25 de Abril como uma aula de pedagogia. Só tenho a louvá-lo. Terá sido também uma maneira de não falar de outros assuntos que são muito mais difíceis de abordar num dia festivo, como a corrupção.

No dia a seguir, surgiram uma série de artigos de opinião que são esmagadoramente a favor e elogiosos do discurso do Presidente. O único que não foi tão elogioso foi o de Manuel Loff. A determinada altura escreveu: “Quando Marcelo nos pede para não ‘[exigir] aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (...) agora tidos por evidentes, intemporais e universais’, persiste num dos mais velhos erros metodológicos da leitura reaccionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo tiveram quem as denunciasse.” 

É aqui que está a questão que mais necessita de ser debatida: as tais alternativas. Eu até sugeria aos mais novos que começassem por ler a carta de Pêro Vaz de Caminha sobre o achamento do Brasil, em que conta o encontro dos marinheiros portugueses com os habitantes locais. Ele faz a descrição minuciosa de como ele estavam seminus e como se conseguiam entender. A partir daí é necessário dizer quais eram as alternativas àquilo que se fez depois de os europeus, através dos portugueses, saberem que existiam essas terras habitadas por seres humanos que, segundo Charles Boxer, estavam na idade da pedra. O desafio que eu faço é: digam lá quais eram as alternativas. Os marinheiros chegavam lá e, em vez de irem imbuídos das bulas papais que foram concedidas ao rei de Portugal para as Descobertas, iam actuar com a moral actual?

É para isso que o Presidente da República chama a atenção.
Eu já fiz essa tentativa de saber como se lidava com essas populações. Quando uma pessoa diz que é contra o colonialismo, fico com a dúvida sobre o que essa pessoa está a dizer: uma coisa é ser contra o colonialismo numa perspectiva pós II Guerra Mundial; outra é ser contra o colonialismo e recuar às colónias gregas e fenícias e condenar isso tudo e pedir indemnizações. Tudo isso tem de ser devidamente contextualizado com bom senso.

Uma das posições que, embora não concordando, aceitaria seria dizer: “Quando os portugueses chegaram às costas do Brasil e viram que estavam lá seres humanos com os quais não se entendiam, deviam ter feito meia volta e terem-nos deixado lá estar em paz.” A partir deste absurdo, vamos discutir se havia alternativas como disse o professor Manuel Loff. Estou desejoso de saber quais são. Fico à espera que este desafio do Presidente da República e a resposta do professor Manuel Loff sejam o próximo plano do debate, para acabarmos de vez com estas suspeições e estas autoflagelações que têm sido feitas nos últimos tempos.

Noutro artigo, o mesmo Manuel Loff escreveu que, enquanto “permanecem vivos os protagonistas imediatos da guerra colonial, permanece forte a ideologia da legitimidade da dominação colonial”. Em Portugal, acha que ainda existe essa ideologia da legitimidade da dominação colonial? Pensa que há uma nostalgia do império?
Tenho a certeza de que há uma pequena percentagem de antigos combatentes que ainda defende essa legitimidade, mas a maior parte ainda lamenta e com razão que, no contexto desta discussão, não reconheçam o enorme sacrifício que foi o terem lá ido. Há que separar a questão política do serviço obrigatório, de cumprir aquilo que estava estabelecido na altura. Muitos dos oficiais que fizeram o 25 de Abril foram ilustres combatentes da guerra colonial e foi exactamente por terem esse sentimento do dever cumprido que se sentiram com o ânimo e justificação para fazerem o 25 de Abril. Essa ligação da guerra colonial com o 25 de Abril que está perfeitamente consolidada nos militares que o fizeram — não está, por vezes feita, de uma forma positiva na sociedade civil.

M.R.S. também falou em dissecar tudo, mas que isso pode abrir feridas. Ou elas ainda estão abertas e tentamos ignorá-las?
Muitas feridas. As feridas existiram sempre ao longo da História. A História é uma sucessão de períodos em que se aplicam ferimentos, uns físicos, outros morais. Temos de viver com isso e saber que não é nada de novo. A posição cómoda é não mexer nas feridas e é uma posição que deve ter séculos. Isto é tudo da natureza humana. 

Um ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, dizia que se falava mais de como a descolonização foi feita do que da própria guerra colonial, talvez para impedir que se falasse da violência colonial. Portugal já assumiu que cometeu crimes de guerra, por exemplo?
Sim, claro. Isso está perfeitamente assumido. As pessoas têm de ler nos livros em que isso foi publicado. É a tal História da História. Está assumido, mas a História não se esgota aí. Temos de ter a noção de que tem de ser tudo visto no seu conjunto. Eu estive em duas comissões em Angola e nunca tive conhecimento de nenhum massacre. Só os conheci muito depois, a partir do 25 de Abril. Só sabia de Wiryamu (1972), em Moçambique, porque foi tornado público cá em Portugal. 

Manuel Loff lembra uma série de massacres coloniais como Pidjiguiti (1959), Viqueque (1959), Mueda (1960), Baixa do Kasanje (1961), Wiryamu (1972), Batepá (1953), os musseques de Luanda (1961), os contramassacres do Norte de Angola (1961).
Mas isso em 13 anos de guerra é muito pouco, se compararmos com o que está a acontecer agora no Norte de Moçambique ou na Lunda há cerca de um mês. Ninguém nega o ter acontecido, são situações extremas, mas não podemos fazer disso a chapa, o modelo da guerra colonial, porque não foi isso.

Marcelo apelou a um debate sobre a guerra colonial que envolva os povos colonizados. Acha que está na altura de isso acontecer e de olharem todos juntos para a história desses massacres ou cada um vai continuar a fazer a sua História?
Vão fazendo a sua História. Há poucas publicações nesses países, mas esperamos que isso possa fazer também parte do debate. Mas há que ter em conta que a imagem que existe de Portugal nesses países não é inteiramente negativa. Digo mais: a maior parte dos habitantes de Angola, Moçambique, Guiné, São Tomé e Cabo Verde é claramente superior e com laços mais afectivos do que em outras colónias. 

Está a dizer que houve um colonialismo bonzinho?
A ideia que por vezes vem a debate é essa. O colonialismo bonzinho, por vezes, é o resultado de não termos capacidade para sermos piores. A distância civilizacional entre nós e os africanos era menor do que entre os holandeses e os asiáticos ou os ingleses e os africanos. Como estávamos mais próximos deles, talvez não fôssemos tão arrogantes e por falta de meios financeiros não tínhamos capacidade para sermos uns grandes colonialistas. E isso foi, talvez, um dos erros maiores da História: foi querermos ter um império colonial, no final do séc. XIX, como a Inglaterra, e ainda quisemos ter aquele território entre Angola e Moçambique. Isto era uma coisa absolutamente de loucos, nós não tínhamos meios. Éramos um país pobre, que não tinha riqueza nem excesso de população para poder ambicionar ter um império colonial. Quando chegámos à década de 50 e 60, é claro que foi um erro; assim que as outras potências começaram a descolonizar, o nosso Governo devia ter sido o primeiro a dizer: “Nós também!” Do ponto de vista político, foi um excesso. Parafraseando Camões, foi “mais do que prometia a força humana”. E há o aspecto humano dos militares que fizeram o sacrifício de lá estar e o dos que estavam lá como colonos.

A deputada Joacine Katar Moreira defende a retirada de pinturas com alusão à escravatura da Assembleia da República. O que acha disto?
Mas retirar para quê? Para esconder? A democracia não é renegar o percurso que fizemos na História. Quando se der o caso de lá irem visitas de escolas, deve-se aproveitar para explicar o que aconteceu.

Por último, está em curso uma revisão da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (​LOBOFA). Concorda? O que falhou até agora para se ter de mudar a organização das FA?
Uma das coisas que falham estrondosamente é a comunicação. Não consigo dizer se sou a favor ou se sou contra e eu fui militar durante mais de 30 anos. Se tenho dificuldade em tomar posição, imagine-se o resto dos cidadãos. Da parte do Ministério da Defesa Nacional não houve ainda o cuidado, até em termos de pedagogia política, de anunciar ao país as razões concretas e práticas desta mudança. Não basta dizer que os outros países aliados também o fizeram. Se nos compararmos com países da nossa dimensão, como a Bélgica, Holanda, Dinamarca, nenhum deles tem a geografia que nós temos e muito menos a História. Temos outras necessidades. O que eu esperava, e que ajudaria todos os portugueses a perceber por que razão o Governo quer fazer esta alteração, era que nos citassem dois ou três exemplos de situações vividas recentemente, sobretudo em termos operacionais, em que tivesse havido alguma dificuldade de articulação dos meios, justamente por não existir a orgânica superior que o Governo agora quer implementar. 

O ministro não foi capaz de explicar isso?
E os deputados porque é que não perguntam? Por vezes não fazem perguntas, porque não sabem o suficiente para fazerem as perguntas. Isto é que é pena.

Não devemos caminhar para um chief of Defense Staff (Chod) como existe noutros países da NATO? Ou seja, um estado-maior conjunto, até porque temos cada vez menos efectivos? Não está na altura de fazer uma revisão de cima a baixo?
Não tenho nenhum indicador que isso seja assim. O formarmos uma cabeça ainda maior do que aquela que temos não vai resolver o problema da falta de efectivos.

Acha que esta reforma pode engordar a cabeça?
Vamos ficar com uma coisa cabeçuda, com um cabeçudo, uma coisa enorme com umas pernas muito pequeninas [os ramos militares].

O cabeçudo nesse caso será o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA)?
Pois, terá de ser. Não imagino que seja possível ao EMGFA passar para a nova situação sem aumentar enormemente a sua dimensão, nem creio que seja possível permanecer no edifício do Restelo. Mas, enfim, estou à espera que me expliquem e lamento imenso que estejamos ainda nesta altura com estas dúvidas.

No caso da pandemia, e no da vacinação, as Forças Armadas (FA) revelaram-se uma verdadeira força de Protecção Civil? É afinal essa a sua vocação?
Tudo isto foi uma grande surpresa, mas, por outro lado, faz sentido que, numa situação difícil como nós vivemos, que as FA venham colaborar na linha da frente. Talvez o necessário seja rever alguma legislação, para que numa situação futura a actuação possa ser feita de uma maneira mais dinâmica e mais pronta. Pareceu-me absolutamente correcto tirar o máximo partido dos fraquíssimos meios que as FA têm. Neste momento, já não são só os problemas materiais, mas os problemas de pessoal. Enquanto não resolverem as condições de funcionamento do regime de voluntariado, de maneira a torná-lo mais atraente, é claro que vão ter sempre dificuldade para ter os efectivos necessários.

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