“O essencial é invisível aos olhos” e “longe dos olhos, longe do coração”

É necessário um questionamento profundo da nossa cultura e do nosso sistema de valores para a conceção de novas políticas e práticas de gestão da água, que assegurem a coexistência com outras espécies e recursos naturais.

“A água na terra ou nas coisas é como o sangue no nosso corpo. A água é para beber, a água é para a comida, a água é para lavar, a água é para tudo, [...] ele chovendo a terra dá tudo [...] e não chovendo a terra não dá nada, [...] a pessoa que não tem sangue morre e assim é a terra, não chove não há água, a terra morre, morrem as árvores, morre tudo.”
Residente de Charneca, freguesia de Querença (em A água dá, A água tira, de Sónia Tomé, 2008)*

Sabe-se que 90% da informação que chega ao cérebro humano é visual. De facto, temos tendência a esquecer, ou mesmo não acreditar, naquilo que não vemos. Quando falamos de água pensamos logo na água que se vê: os rios, lagos e, claro, nas albufeiras. No entanto, as águas subterrâneas são aproximadamente 100 vezes mais abundantes do que as águas superficiais. O solo não é só uma superfície por onde transita a água, mas também uma esponja que filtra e armazena água em aquíferos. E fá-lo melhor quando esta esponja tem vida. Assim, a chuva deve ser vista não só como água que cai ao solo, mas como a água que é “produzida” no solo, pelas florestas, e só depois é devolvida a armazenada em aquíferos. É partindo desta abordagem do invisível da água subterrânea (o que inclui olhar para a eco hidrologia, disciplina que integra a interação entre o ciclo hidrológico e os ecossistemas) que iremos refletir sobre o status quo das políticas públicas da água e a sua governança.

Um primeiro aspeto que nos chama a atenção é o foco das políticas públicas situar-se no lado visível da água. Esta é uma gestão “infraestruturo-centrica”, que nos chega pela mão da engenharia civil. São opções políticas cujas soluções para os problemas continuam a ser muito direcionadas para construção de barragens, transvases ou dessalinizadoras (veja-se o caso dos debates em curso no Algarve, em função do Plano de Recuperação e Resiliência, e as suas opções de investimento público com maior adesão). Só mais recentemente as abordagens verdes, i.e., com soluções baseadas na natureza, têm vindo a ganhar espaço. Mas para já só na discussão, pois não se encontram ainda integradas no processo de decisão.

As soluções baseadas na natureza têm em consideração a eco hidrologia para produzir e armazenar água: usar os aquíferos como estruturas de armazenamento naturais, construir açudes nas áreas de afloramento, promover usos de solo que aumentem a infiltração e recarga dos aquíferos, apoiar a restauração ecológica das florestas... Estas soluções verdes não só são mais amigáveis da natureza, como também necessárias em face das alterações climáticas. Este último dado é especialmente relevante pois a sul do Tejo o clima é considerado semiárido e a tendência é para a diminuição de precipitação e aumento de períodos de seca (a precipitação tem estado abaixo da média desde 2019). A preocupação é muita (pela primeira vez, em 2020, se formulou um Plano de Eficiência Hídrica para o Algarve) e os desafios cada vez mais urgentes, mas as “soluções” são as antigas. Mas se não chove, como se enchem as barragens?

A boa noticia é que o conhecimento técnico “verde” existe. A má notícia é que a sociedade se tem vindo a desvincular da natureza. Pouca gente conhece e aproveita os processos eco hidrológicos. As pessoas não sabem quais os lugares onde aflora a água de um aquífero, ou as práticas agrícolas que mantêm a humidade do solo. E, se os conhecem, raramente os conseguem por em prática, num sistema económico em que é a produção em grande escala e no curto prazo que viabiliza financeiramente as empresas. É, pois, necessário um questionamento profundo da nossa cultura e do nosso sistema de valores para a conceção de novas políticas e práticas de gestão da água, que assegurem a coexistência com outras espécies e recursos naturais. De notar que isto não é escolher voltar ao passado, mas sim escolher usar a tecnologia e o conhecimento ao serviço da natureza (ou seja, ao nosso serviço), e não na luta contra ela (e contra nós).

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Havendo conhecimento técnico, a mudança na gestão é, portanto, uma questão sociopolítica, que exige novas formas de governança que desafiem o status quo. As soluções “verdes” só poderão ser integradas nas atuais políticas de água através de um novo paradigma de governação, adaptado às condições eco hidrológicas e socioeconómicas locais. Mas desenhar e implementar soluções locais é contrário a um estado centralizador como o nosso, que trata todos os territórios como iguais, numa lógica de ‘one-size-fits-all’. As soluções verdes exigem um estilo de governança que substitua o Estado centralizador por um estilo mais horizontal, baseado em parcerias reais e efetivas, com os utilizadores e demais cidadãos (organizados em entidades de gestão), num formato de cogestão que gere sinergias. Este paradigma foi defendido por Elinor Ostrom, prémio Nobel de Economia em 2009, mas ainda representa um grande desafio no nosso país, já que supõe empoderar usuários e autoridades regionais de gestão dos recursos. Pode-se perder o controlo (central), vai-se mais devagar, mas vai-se mais longe certamente.

A chave para o novo estilo de governança implica uma outra mudança de paradigma: da competição para a cooperação. Uma cooperação em quatro dimensões: 1) cooperação entre saberes (a) de diferentes disciplinas científicas, (b) entre a ciência, os agentes políticos, as ONG’s os cidadãos (na sua diversidade); 2) cooperação entre as instituições governativas dos diferentes sectores e nos diferentes níveis (local, regional, nacional, internacional); 3) cooperação entre os utilizadores do mesmo recurso; 4) cooperação dos seres humanos com a natureza. Se esta cooperação fomentar verdadeiramente a complementaridade e se preocupar em nivelar as simetrias de poder (capacitando os elementos com menos competências, partilhando informação abertamente, praticando a justiça e equidade entre as partes), promoverá a transformação institucional necessária para enfrentar os desafios do momento. E o momento, segundo afirmou recentemente Sir David Attenborough no Conselho de Segurança das Nações Unidas, aproxima-se perigosamente do “tipping point”, ponto em que a degradação dos ecossistemas se torna irreversível.

Estimular esta cooperação em quatro dimensões não é simples, mas existe todo um conjunto de conhecimentos sobre governança e metodologias participativas (de cocriação de conhecimento, de superação de conflitos, de trabalho com equipas interdisciplinares e intersectoriais…) que estão muito testados nas ciências sociais, mas que ainda não estão institucionalizados. Por várias razões: porque não se aprendem na “escola” e muito em particular nas escolas de engenharia que produzem os/as técnicos/as que gerem e decidem sobre a água; porque as ciências sociais estão afastadas da gestão pública dos recursos naturais; mas também porque implicam sair da zona de conforto e entrar no desconhecido com soluções difíceis de datar e, sobretudo, de quantificar. Estas características das novas abordagens de governação não dão votos numa legislatura nem em duas, não são “visíveis” a olho nu, logo, apesar de “essenciais”, estão “longe do coração”, sobretudo do coração das elites (políticas e económicas).

O papel da sociologia será facilitar estes processos para tornar visível o que é invisível, e trazer para perto do coração o que é essencial. O projeto científico eGROUNDWATER é o contexto em que trabalharemos para estes objetivos. O programa PRIMA financia-nos durante quatro anos, mas as sementes serão plantadas e os efeitos da cooperação – nas quatro dimensões acima – continuarão. Serão difíceis de datar e quantificar. Tal como a política, a ciência precisa de ver reconhecida a importância do longo prazo e da qualidade – em substituição do paradigma científico atual em que o curto prazo (o “para já”) e a quantidade (de artigos, de conferências…) são premiadas.

*Tomé, Sónia., 2008. A água dá, a água tira: um estudo sobre cultura tradicional da água no Barrocal Algarvio, freguesias de Querença, Tôr e Salir do Concelho de Loulé. Óbidos: Sinapis, cop. 2012.

Marta Pedro Varanda é socióloga. Doutora pela Université des Sciences et Technologies de Lille-Lille 1. É professora no ISEG-Universidade de Lisboa. Está neste momento envolvida na pesquisa eGROUNDWATER – projeto de ciência cidadã para a gestão sustentável da água subterrânea financiado pela PRIMA Foundation. Tem vindo a trabalhar, numa perspetiva interdisciplinar, sobre participação da sociedade na gestão e nas políticas publicas de recursos hídricos, enquanto problema de ação coletiva. Organiza e leciona Curso Online

Escola Luso-Brasileira de Análise de Redes Sociais (escoladerede.com)

Marta Nieto Romero é mestre em Ecologia e Planeamento Rural pela Universidade Autónoma de Madrid e o IAMZ-Universidade de Lleida. Atual investigadora no ISEG-Universidade de Lisboa. No seu doutoramento tem pesquisado as dinâmicas sociais e institucionais dos terrenos florestais comunitários (baldios em Portugal e montes veciñais en man comum na Galiza). É apaixonada pela participação e a ciência transdisciplinar e co-criadora do Re.Imaginary, um projeto de métodos criativos de participação (www.reimaginary.com).  No seu projeto atual (eGROUNDWATER) estuda a água subterrânea na perspetiva do procomum (commons em inglês).

Sofia Bento é socióloga, doutorada em Sociologia da Inovação pela École Normale Supérieure des Mines de Paris. É atualmente investigadora do eGROUNDWATER e do Agorarisk. Envolve-se em projetos de investigação-ação com processos participativos, dentro e fora da academia, com uma forte aposta nos processos colaborativos de produção de conhecimento. É co-criadora do ULab (https://csg.rc.iseg.ulisboa.pt/hubs/ulab-iseg/) no ISEG, onde se experimentam novas ferramentas interativas e se formam pessoas para estes processos.

As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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