Redefinição dos papeis sociais da saúde

Uma maior valorização da enfermagem aponta um caminho para uma governança na saúde com mais equidade e mais focada nas pessoas.

Os profissionais de saúde foram alvo de uma visibilidade sem precedente na nossa história. Os fatores que contribuíram são sobejamente conhecidos: a pandemia covid-19, a necessidade de recuperar a atividade programada ou a maior campanha de vacinação dos tempos modernos. Sem esquecer os desafios estruturantes previamente existentes, tais como, o envelhecimento da população ou a necessidade de evoluir o SNS para um paradigma da integração de cuidados.

Os trabalhadores obtiveram a atenção que há muito merecem, mas é necessário mais que apenas apreciação. Se queremos estar preparados para os desafios na saúde que se colocam, precisamos não só de redefinir as carreiras e melhorar os salários, como também descentralizar a decisão, capacitar a gestão intermédia e redefinir os papeis sociais da saúde. Uma maior valorização da enfermagem aponta um caminho para uma governança na saúde com mais equidade e mais focada nas pessoas.

Os cuidados de saúde são prestados através de equipas multidisciplinares, em praticamente todos os contextos, seja em centros de vacinação, urgências, cuidados de saúde primários ou internamento. No entanto, a distribuição de poder dentro destas equipas é bastante desigual e espelha o capital cultural e social acumulado por cada uma das profissões, mais do que o conhecimento específico de cada elemento.

Esta realidade é transversal a todos os sistemas de saúde. No entanto, é mais intensa em países como o nosso, onde não há uma prática de enfermagem avançada, que assuma e partilhe maiores responsabilidades. A importação do modelo de cuidados em vigor nos países anglo-saxónicos iria traduzir-se num aumento de competências do enfermeiro especialista. Relacionada com a prescrição de enfermagem, não se pretende substituir o trabalho de outros profissionais de saúde, mas sim, melhorar a acessibilidade e disponibilidade de cuidados de saúde.

Sabemos que os resultados em saúde, proporcionados por este sistema de parceria de responsabilidades, são idênticos aos resultados obtidos por um sistema imbuído no paradigma em que operamos. Seria assim possível evoluir para uma solução segura e aceite pelos utentes, que otimiza os recursos existentes e contribui para a acessibilidade aos cuidados de saúde. A Joint Commission, talvez a maior instituição internacional que acredita prestadores de cuidados de saúde, identifica que falhas de comunicação associadas a hierarquias rígidas são causa de erros clínicos, alguns dos quais graves ou mesmo fatais.

A Organização Mundial da Saúde reconhece que há fatores estruturantes que moldam a seleção e progressão na liderança em saúde. Assim como uma partilha de responsabilidades na prestação de cuidados melhora os resultados em saúde, a mesma ideia aplicada na gestão e liderança teria, sem dúvida, um impacto semelhante. Com a vantagem que iria preparar melhor todo o ecossistema de saúde para os desafios do futuro, desde a recuperação da atividade programada, a integração de cuidados, a transição digital, passando pela saúde verde, sem esquecer o controlo da pandemia covid-19.

A enfermagem tem um papel central a desempenhar. Está formatada para debater e saber ouvir os múltiplos atores da saúde. Ao ser percecionada como igual, tem maiores probabilidades de utilizar as competências adquiridas de comunicação e análise, para em conjunto com a comunidade, melhorar o estado de saúde da população. A pandemia alterou a forma como a promoção da saúde e a interação com a comunidade é efetuada. Combater a desinformação nas redes sociais tornou-se mais importante que nos momentos de contato presencial com os utentes. Vários profissionais de saúde adaptaram-se com sucesso e têm assumido essa função. Agora, é necessário que as escolas acompanhem as novas tendências da comunicação em saúde.

Para controlar a pandemia e fortalecer todo o ecossistema de saúde, precisamos de redefinir os papeis sociais de cada profissão da saúde. Não só na prática, onde os resultados em saúde tenderão a ser melhores, mas igualmente tornando o nível da gestão estratégica mais equitativo. Esta é a geração de enfermeiros mais bem preparada de sempre, não a aproveitar em nome de contratos sociais antigos e rígidos, seria um enorme e triste desperdício.

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