Sempre que se fala de morte, a maior parte de nós sente o coração a saltar

Podemos aproveitar a naturalidade, a pureza com que os nossos filhos falam sobre a morte, para nos ajudarmos uns aos outros a ficarmos mais em paz com a única coisa que temos como certa nesta vida!

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@DESIGNER.SANDRAF

Mãe,

A semana passada escrevi sobre como falar sobre sexo com os nossos filhos pode ser intimidante, mas na verdade não é a conversa mais aflitiva que podemos ter com eles. Pelo menos para mim, há uma outra que me deixa sem ar e que exige todo o meu autocontrole para responder com o mínimo de naturalidade: a morte.

Pensando bem, não é exclusiva aos nossos filhos, porque sempre que se fala de morte, a maior parte de nós sente o coração a saltar. Mas, mãe, temos mesmo que falar mais sobre isto. E podemos aproveitar a naturalidade, a pureza com que os nossos filhos falam sobre a morte, para nos ajudarmos uns aos outros a ficarmos mais em paz com a única coisa que temos como certa nesta vida!

Tantas vezes oiço pessoas tristes porque não sabiam bem o que é que os pais ou maridos/mulheres queriam que acontecesse quando morressem. Ou arrependidos por não terem tido coragem de falar com os seus familiares da morte durante doenças prolongadas, não dando espaço ao doente para desabafar os seus medos e falar sobre os seus desejos.

Mas há ainda um outro obstáculo... o da superstição. Há algo dentro de nós que sente aversão a falar ou escrever sobre a morte de alguém que adoramos (ou a nossa). Já tentou escrever num papel “A Ana vai morrer”? Experimente... Não vai gostar. Mas temos de deixar o medo das palavras e dos pensamentos. Porque é através delas e da liberdade de as usar que podemos aprender a viver com este medo que disfarçadamente pode bloquear tanto aquilo que não queremos perder: a vida!

Por isso começamos por uma coisa simples, com o disclaimer necessário (tipo companhia aérea): no caso, muito improvável, de a mãe vir a morrer, quer que vá de preto ao seu enterro?


Ana,

Pronto, vamos lá falar da morte, porque a mim, sinceramente, não me custa muito, provavelmente porque, ao contrário de ti, sinto que quanto mais falo e brinco com ela, mais irreal se torna. Ou então é porque o Irvin D. Yalom tem razão e quando vivemos uma vida longa e realizada, sem grandes arrependimentos, é muito mais fácil encarar a ideia de que um dia vai acabar. É o conceito antigo da boa morte, que toda a gente ambicionava.

Deixei-te aí em casa o último livro dele, A Matter of Death and Life, um diário dos últimos meses de vida da mulher — de há mais de 70 anos —, um género das nossas birras, em que cada um escreve um capítulo. E que, depois, ele continua, já viúvo. A coragem e a franqueza com que fala do que vai sentindo, da contradição de sentimentos que lhe passam pela cabeça e pelo coração, é por vezes um murro no estômago. Deixou-me com a certeza de que: 1. só quem passa por elas é que sabe; e 2. uma boa psicoterapia, ou outra forma de autoconhecimento, é um verdadeiro seguro de vida, porque nos permite entendermos e verbalizarmos melhor o que se passa dentro de nós em momentos difíceis como estes.

Dito isto, vamos às questões práticas: se queres saber, preferia que a cerimónia fúnebre fosse ainda em vida, para poder usufruir dela.

Quero ouvir-te cantar, e quero muito escutar os elogios fúnebres, e ainda a tempo de poder riscar do meu testamento os autores daqueles que me desiludirem, claro. Mas se não der para nos ouvir aqui, ouvi-los-ei, onde quer que esteja, nem que seja só dentro dos vossos corações.

Quero uma lápide de pedra com nome e datas, porque, depois de anos a perseguir estes marcos deixados pelos protagonistas dos meus livros, sinto a obrigação de agir em conformidade.

Quero que vás de preto, claro, por mim e por ti, porque a experiência me diz que nesses momentos não nos apetece mesmo vestir cores berrantes. Os “panos de dó”, como lhes chamavam, assim como todos os outros rituais que sabiamente foram refinados ao longo do tempo, têm um efeito poderoso no alívio do sofrimento. Pelo menos, espero que sim.

Mas quero, sobretudo, que celebrem a minha vida nos gestos que forem fazendo todos os dias, ao longo de todas as vossas vidas. Ter netos, como estou sempre a dizer, é a melhor terapia contra o medo da morte.

Entretanto, é claro que não escrevi a frase que me mandaste, porque obviamente que a morte daqueles que amo é insuportável.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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