Lobo Antunes e o martírio dos 350 mil cidadãos portugueses de segunda

As empresas que não servem os clientes desaparecem. O cliente acaba por ser o operador da guilhotina. O Ministério dos Negócios Estrangeiros parece não ter a necessidade de melhorar, aprender, servir melhor os utentes e, como tal, tem um sistema de atendimento tão frágil que, em momentos de pressão, como foi o caso do último ano, acaba por se desmoronar.

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LUSA/ANDY RAIN

A um nível empresarial, a covid-19 trouxe alguns pontos positivos, uma vez que testou cadeias de distribuição e procedimentos nas empresas que fazem parte do nosso quotidiano. Obrigou, também, a criar planos de contingência mais robustos e formas de trabalhar que ajudam a criar soluções antes que a bola de neve ganhe dimensões incontroláveis. 

O Ministério dos Negócios Estrangeiros não é uma empresa, mas necessita de aprender com o mundo empresarial porque, apesar de não ter como foco a geração de capital, tem a obrigação de apoiar os cidadãos que vivem no estrangeiro e que se encontram em situações de desespero, como é o meu caso. 

As empresas que não servem os clientes desaparecem. O cliente acaba por ser o operador da guilhotina. O Ministério dos Negócios Estrangeiros parece não ter a necessidade de melhorar, aprender, servir melhor os utentes e, como tal, tem um sistema de atendimento tão frágil que, em momentos de pressão, como foi o caso do último ano, acaba por se desmoronar.

Em Janeiro de 2019, o PÚBLICO partilhou um artigo que descrevia uma visita à Embaixada de Portugal em Londres como “um martírio” e que a solução dada por alguns funcionários para tratar de assuntos como renovação de passaporte era ir a Portugal. 

O meu consulado é em Manchester e não me sugeriram ir às Agras do Norte, Aveiro, de onde sou natural, para tratar do passaporte. Mas o martírio foi o mesmo ou pior. O meu passaporte e cartão de cidadão caducaram durante a pandemia de covid-19 e, ao tentar solucionar o problema, eis o resultado.

Emails? Ignorados. Telefonemas? Sou posto continuamente em espera durante 29 minutos. Ao minuto 30, sem falta, a chamada é desconectada. Sistema de agendamento online? Não funciona. Pedidos de agendamento de reunião? Ignorados. Pedidos de escalonamento do problema? Ignorados.

O Governo português diz também, no infame artigo, que “todos os casos “urgentes” são resolvidos de imediato”.

O meu caso: três membros da minha família têm cancro e não vou poder viajar assim que as fronteiras abrirem.

Vou, dentro em breve, começar um trabalho novo, depois de quase um ano sem trabalhar por causa da covid-19. No primeiro dia há que introduzir identificação válida, caso contrário não posso ser contratado.

Em Maio, tenho o casamento do meu primo. Necessito de organizar o passaporte para a minha filha, que nasceu no Reino Unido. Se a Polícia no Reino Unido me pedir documentos durante uma operação-stop, o que faço?

Será esta uma posição urgente, senhor embaixador Lobo Antunes?

Uma das coisas que aprendi durante 18 anos de emigração é que crítica sem solução é ruído. Como tal, a minha sugestão é a seguinte: apoie os seus cidadãos, reforme o seu protocolo de atendimento, escute o que os artigos nos jornais e pessoas nos seus consulados dizem. Olhe para o trabalho de reforço que as empresas fizeram durante o último ano. Cresça. Melhore. Sirva.

A Inglaterra é o maior destino de emigração dos últimos dez anos. Somos mais de 350 mil, fora os que nunca se inscreveram na embaixada ou no consulado. Os vossos números dizem-vos isso, mas o vosso modus operandi ignora o facto e, assim sendo, andamos aqui neste martírio de cidadãos de segunda.

Durante a composição deste texto recebi uma mensagem directa do embaixador (há dois dias enviei uma nota com a comunicação social em cópia) e uma nota de agendamento para o dia em que teria o voo para Portugal, caso tivesse sido atendido há semanas.

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