E se vivêssemos sem cravos? Acordemos, Portugal

Após o 25 de Abril de 1974, os meus pais e os seus pares puderam ganhar asas. Voaram décadas em poucos anos, com a sede, o ânimo e a gula que só a liberdade pós-enjaulamento reconhece e testemunha. Os cravos abriram-lhes as portas, igualaram as oportunidades e, conferiram-lhes também responsabilidade.

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Nuno Ferreira Santos

Ainda estou de ressaca. A bebedeira é fruto de uma sequiosa vontade de sugar Abril, 47 anos depois. Desde o início do mês, o delicioso programa Os Filhos da Madrugada, de Anabela Mota Ribeiro, tem feito um excelente serviço público, reforçando a importância de uma revolução aparentemente longínqua, mas que nos permitiu tantas actuais conquistas. Os entrevistados são todos nascidos após 1974. Reflectem, de forma abrangente e imparcial, a liberdade que os cravos nos deram. A todos. Aos mais privilegiados à época e aos diametralmente opostos.

Diariamente devoro este programa que irá terminar no dia da revolução. Correcção, no dia dos 47 anos da revolução. Todos os dias, à sua conta, tenho recuado a uma infância feliz, repleta de histórias do antigo regime e da pobreza extrema. A minha família tem origens humildes. Sou filha do povo. A minha avó materna, falecida há poucos meses com 102 anos de vida, era analfabeta. Nasceu num Portugal ainda não em ditadura, mas numa inconstante crise política, sanitária e financeira que espoletou na importância de Salazar a partir da metade dessa década. O resto da História já todos sabemos. Ou será que não nos queremos lembrar?

Na verdade, os “loucos” anos 20 em Portugal foram sinónimo de inconstância, de um agravar de diferenças sociais, oriundas das indissociáveis diferenças financeiras. Salazar, chamado a endireitar as contas, mostrou-se um jovem brilhante. À luz do que a Europa testemunhava na Alemanha, em Itália ou Espanha, a direita endireitava as contas, extremando, simultaneamente, as políticas. O guião seguinte já todos sabemos de cor: quase 50 anos de um estado que nada teve de novo, mas antes de opressão, injustiça, disparidades, repressão, censura e a lista é interminável.

Sou filha do povo. Reescrevo-o. Cresci a ouvir as histórias do meu avô preso pela PIDE por, simplesmente, ter ido ver Humberto Delgado à praça da minha terra natal, deixando sozinha a minha avó analfabeta, à época com quatro filhos para alimentar; do sonho da minha mãe que queria ser professora, morto à nascença por ter de ir trabalhar com apenas 10 anos para ajudar nas contas da casa. O meu pai teve de o fazer ainda mais novo, com nove anos de idade, porque à pobreza aliou-se uma doença fatal do meu avô paterno que nunca conheci. Cresci a folhear os álbuns censurados do meu pai em Angola, obrigado a ir para uma guerra colonial que subtraiu anos de vida a milhares de jovens portugueses. Cresci numa família sem filiações políticas, mas com convicções, dever, direito e, sobretudo, orgulho de voto.

Após o 25 de Abril de 1974, os meus pais e os seus pares puderam ganhar asas. Voaram décadas em poucos anos, com a sede, o ânimo e a gula que só a liberdade pós-enjaulamento reconhece e testemunha. Os cravos abriram-lhes as portas, igualaram as oportunidades e, conferiram-lhes também responsabilidade. Os cravos fizeram com que as nossas gerações pudessem estudar, crescer, viajar, lutar pelos seus direitos. Os cravos deram-nos tanta liberdade que lidamos com ela como com aquele amor tomado por adquirido que, lentamente, desvalorizamos, e, latentemente, vai morrendo, até nos apercebemos que é tarde de mais para a recuperação. Acordemos Portugal!

A democracia não é perfeita, mas, parafraseando Churchill “é a pior forma de governar, com a excepção de todas as outras”.

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