A verdadeira mão invisível: as mulheres e a necessidade de uma economia do cuidado

A pandemia covid-19 expôs disparidades antigas e persistentes entre mulheres e homens ao nível dos salários, pensões, níveis de pobreza e partilha das responsabilidades domésticas. Ao mesmo tempo, mostrou a importância vital do trabalho do cuidado – maioritariamente realizado por mulheres – nas nossas sociedades. Como resolver esse desequilíbrio?

As mulheres têm mantido a sociedade a funcionar neste tempo de pandemia, excedendo o que sempre fizeram, e com escasso reconhecimento e valorização social. Elas são a maioria entre profissionais de saúde e assistência, prestando cuidados a doentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, ou pessoas com necessidades especiais. Elas prestam cuidados em casa durante os confinamentos, substituindo-se a profissionais da educação e saúde, tentando conciliar este trabalho cuidador não remunerado com as suas próprias responsabilidades profissionais.

Elas estão a assegurar as nossas cadeias alimentares enquanto maioria dos trabalhadores em supermercados e serviços de distribuição alimentar. Elas garantem um ambiente seguro, muitas vezes a expensas da sua própria saúde, enquanto esmagadora maioria no setor das limpezas.

Elas acompanham e tranquilizam as pessoas a quem esta pandemia está a causar imenso sofrimento: mulheres vítimas de violência nas relações de intimidade, mulheres em situação de sem-abrigo, mulheres idosas, mulheres indocumentadas. Em suma, elas são a mão invisível que mantém a coesão das nossas sociedades.

As mulheres sempre assumiram o essencial das responsabilidades cuidadoras, mas continuam a ser as trabalhadoras menos valorizadas e mais mal remuneradas em setores sem os quais, como agora se percebe claramente, as nossas sociedades e economias simplesmente entrariam em colapso.

Ao contrário da crise de 2008, a pandemia afetou principalmente setores onde as mulheres estão em maioria. Elas correm, portanto, maior risco de perder o seu emprego, os seus rendimentos, e a sua independência económica. O período pós-covid-19 é, portanto, um momento crucial para reconhecer a contribuição das mulheres para a economia e para valorizar o trabalho cuidador como pilar fundamental da sociedade.

Precisamos de um Pacto do Cuidado, não só para mitigar as consequências da pandemia, mas para abrir caminhos para o futuro. Um Pacto do Cuidado, articulado com a transição digital e com a transição verde, criaria um círculo virtuoso, promotor da sustentabilidade da sociedade e do planeta.

Esta pandemia demonstrou que o cuidado é uma necessidade coletiva que requer uma responsabilização coletiva, bem como uma perspetiva de ciclo de vida que englobe o cuidar das crianças, dos idosos, dos dependentes e de nós próprios. Um Pacto do Cuidado permitiria enquadrar de modo coerente estas necessidades, recordando ainda que o investimento nunca é neutro em termos de género. O contexto, as necessidades e a situação de partida das mulheres e dos homens são diferentes; logo, mulheres e homens são afetados de forma diferenciada por esta crise. Negligenciar estas diferenças no desenho das políticas públicas – por exemplo, privilegiando o investimento em setores onde os homens são a maioria dos trabalhadores – pode ter como consequência indesejada agravar as desigualdades entre mulheres e homens.

Um Pacto do Cuidado permitiria também articular todas as políticas que visem promover a coesão social e a igualdade entre mulheres e homens. Estas políticas incluem as que decorrem do futuro plano de ação para a implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, em particular os princípios 9 (Equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada), 11 (Acolhimento e apoio a crianças), 16 (Cuidados de saúde) e 18 (Cuidados de longa duração). Incluem também todas as políticas promotoras do trabalho devidamente remunerado e com direitos no setor do cuidado, onde existe um enorme potencial de criação de emprego.

Como esta pandemia mostrou, o cuidado é o pilar das sociedades; é o que as mantém a funcionar quando tudo pára. É a verdadeira mão invisível que mantém a economia em andamento. Invisível, desvalorizada, não contabilizada, mal remunerada. Temos de mudar este estado de coisas. Temos de ‘cuidar o futuro’, para citar o título de um relatório visionário coordenado por Maria de Lourdes Pintasilgo em 1998 para a Comissão Independente das Nações Unidas sobre População e Qualidade de Vida. Temos de reconstruir melhor, sem deixar ninguém para trás, como o secretário-geral das Nações Unidas tem repetidamente lembrado.

Em suma, temos de reconhecer e valorizar o trabalho do cuidado como elemento fundamental das nossas sociedades. Afinal, cuidar e ser cuidada/o é uma das experiências centrais da natureza humana.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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