Notas de um cidadão médico

Desde 2000, tem-se assistido na Europa e em Portugal a uma mercantilização progressiva da saúde, que tem causado uma diminuição de recursos físicos e humanos no sector público, associado à persistência da falta de articulação e integração dos diferentes níveis de cuidados de saúde (primários, secundários e terciários).

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LUSA/MÁRIO CRUZ

A situação sanitária que decorre desde o início de 2020, causada pela pandemia de covid-19, era expectável e anunciada por vários epidemiologistas, virologistas e outros cientistas. Diversos factores vieram agravar a pandemia e a situação em que vivemos.

Política de saúde

Desde 2000, tem-se assistido na Europa e em Portugal a uma mercantilização progressiva da saúde, que tem causado uma diminuição de recursos físicos e humanos no sector público, associado à persistência da falta de articulação e integração dos diferentes níveis de cuidados de saúde (primários, secundários e terciários).

a) Investimentos no SNS

O investimento de Portugal na saúde foi, em 2019, cerca de 30% inferior à média europeia (segundo Relatório da Comissão Europeia). Em 2018, o gasto público e privado em saúde por habitante em Portugal foi de 2861 dólares (2390 euros) PPD (anula o efeito da diferença de preços entre países; a média nos países da OCDE é de 3994 dólares (3337 euros) PPD (+ 39,6%).

Acresce o subfinanciamento crónico do SNS. Desde 2011, as transferências anuais do Orçamento do Estado (OE) para o SNS foram inferiores à despesa total do SNS: entre 2015 e 2021 houve um défice de 7915 milhões de euros. Para além das dívidas a vários credores, este subfinanciamento não permite cumprir o enunciado no OE, nomeadamente a construção sucessivamente anunciada e adiada de vários hospitais (Seixal, Évora, Lisboa, Sintra) e centros de saúde (Setúbal), assim como a ampliação de outros hospitais (Setúbal). Esta limitação também impede a renovação necessária do equipamento tecnológico das várias instituições de saúde. Veja-se o Relatório da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) relativamente às verbas do OE 2021 para a saúde.

b) Recursos humanos e físicos

O número de médicos por 1000 habitantes era, em 2020, 5,3; mas no SNS correspondia a 2,9 (UE: 3,8) e de enfermeiros a 7,2, sendo no SNS de 4,6 (UE: 8,2).

Nessa data, o mesmo se passava com os médicos intensivistas, (défice de 119 intensivistas) e de camas de Medicina Intensiva (MI) (ratio de 6,5 camas por 100.000 habitantes), com taxas de ocupação dos serviços de MI, antes da pandemia, superiores a 100%. Desde 2003, têm sido reduzidas o número total de camas do SNS. Entre 2008 e 2018, o SNS diminuiu 2.257 camas. O mesmo se passa com os equipamentos no SNS, nomeadamente ventiladores e outros equipamentos de apoio respiratório.

Liderança e comunicação

Liderança e comunicação eficientes são fundamentais em qualquer processo governativo e em particular nas situações de crise.

Apesar de a actual pandemia apresentar vários aspectos desconhecidos e da falta de preparação prévia dos intervenientes, a liderança e a comunicação têm falhado a vários níveis de que são exemplo alguns enunciados da OMS e da DGS (infecção por SARS-CoV-2 confinada à China, uso de máscaras, data da declaração de pandemia e gravidade da situação até ter implodido em Itália, etc.); determinações variáveis do governo quanto ao confinamento/desconfinamento, ao contrário de outros países (Nova Zelândia, Dinamarca, Noruega), explicando a situação à população.

Educação

É preciso justificar as decisões tomadas, baseado em dados (ex: porquê o confinamento aos fins de semana a partir das 13 horas em vez das 15 horas?). Mas tal deve-se, em parte, aos receptores (media, população em geral), isto é, ao seu grau de exigência e aceitação da informação prestada, ou seja, a importância de questionarmos: “Porque não sabemos aquilo que não sabemos?”.

Desigualdades Sociais

Contrariamente à ideia divulgada que a pandemia atinge igualmente todas as classes sociais, verifica-se que atinge mais as classes com menores rendimentos. Este facto, já decorre da prevalência das doenças crónicas nas classes com piores condições socioeconómicas previamente às epidemias, designado por Merrill Singer em 1990 como “Sindemia”. Acrescem as condições de trabalho (construção civil) e de habitação, idosos que vivem sozinhos com indicação para isolamento profiláctico, acesso a medicações crónicas e à alimentação, transportes públicos, etc.

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