Tratado da Carta da Energia: o risco de pagarmos duas vezes a neutralidade carbónica

A situação é complexa do ponto de vista político, e só uma posição de força dos Estados-membros e da União Europeia poderá por um fim às amarras deste Tratado que é um verdadeiro entrave ao futuro comum que todos ansiamos.

Com a atenção focada no Plano de Recuperação e Resiliência, parece estar claríssimo que o próximo quadro de investimentos servirá, entre outros objetivos, para redirecionarmos a economia Portuguesa para a neutralidade carbónica e a sustentabilidade do Planeta, alinhando-a com o Pacto Ecológico Europeu e o Acordo de Paris. De uma forma geral, esta perceção é igualmente notória nos demais Estados-membros da União Europeia. Para o comum cidadão, importará sobretudo o resultado final dos investimentos a realizar em termos dos benefícios que daí resultarão para o seu bem-estar e, porque não dizê-lo, para a sua felicidade.

No entanto, mesmo para o cidadão comum, longe da complexidade das opções e decisões de políticas públicas que condicionam os investimentos, parece estar claríssimo que os combustíveis fósseis não fazem parte desta agenda. E têm razão nesta perceção, a estabilização do sistema climático em torno do aumento médio global da temperatura do Planeta em 1,5°C, relativamente à era pré-industrial, exige que se abandone de vez a opção dos combustíveis fósseis o mais cedo possível.

Acontece, porém, que Portugal, juntamente com mais 55 Partes (nações, União Europeia e Euratom), é signatário de um Tratado relativamente pouco conhecido da opinião pública, designado Tratado da Carta da Energia, assinado em dezembro de 1994 em Lisboa e em vigor desde abril de 1998. O objetivo deste Tratado é a cooperação de longo prazo no domínio energético, declarando que as Partes Contratantes envidarão todos os esforços no sentido de promover o acesso aos mercados internacionais e de desenvolver um mercado livre e concorrencial para os materiais e produtos energéticos. A União Europeia e os seus Estados-membros ratificaram o Tratado com o objetivo de reforçar a segurança energética da UE, garantindo o abastecimento de combustíveis fósseis a partir dos países de Leste.

As disposições do Tratado focam particularmente a proteção de investimentos estrangeiros num determinado Estado relativos ao fornecimento de energia, incluindo minas de carvão, extração de petróleo e gás, gasodutos, refinarias e centrais termoelétricas, bem como a resolução de diferendos entre os Estados participantes e – no caso de investimentos – entre os investidores e os Estado recetores destes investimentos.

O Tratado concede às empresas de energia a possibilidade de processar os Estados por medidas indemnizatórias por investimentos já feitos e que possam ir contra as expectativas de lucro, sendo que o investidor pode decidir apresentar o diferendo para resolução a tribunais de arbitragem, nomeadamente ao Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (ICSID), instituição de arbitragem internacional estabelecida em 1965 para a resolução jurídica de diferendos e para a conciliação entre investidores internacionais. O ICSID é parte integrante do Grupo Banco Mundial, sediado em Washington, D.C.

Muito embora, à data da assinatura deste tratado, se possa compreender as motivações e as disposições então acordadas, atualmente este Tratado é muito enviesado e mesmo descabido face ao que está a acontecer ao sistema energético, isto é, a sua transformação para energias renováveis, que têm a característica de serem recursos endógenos dos respetivos territórios, o que reduz muito o risco do investimento. O clausulado do Tratado da Carta da Energia torna os Estados reféns dos investidores em energias fósseis. Por exemplo, a petrolífera britânica Rockhopper Exploration processou a Itália pela proibição da extração de petróleo (campo Ombrina Mare Offshore) no mar Adriático, reivindicando sete vezes o valor que a empresa investiu inicialmente. Ora, este quadro é incompatível com a necessidade de políticas públicas conducentes ao phasing-out dos combustíveis fósseis, e portanto, incompatível com os objetivos do Acordo de Paris e do Pacto Ecológico Europeu. Os ativos fósseis protegidos por este Tratado podem vir a constituir-se passivos gigantescos que os Estados poderão ter de suportar num quadro de neutralidade carbónica até 2050, se os investidores assim o entenderem.

Por esta razão, estão em curso negociações para a modernização do Tratado da Carta da Energia que se estão a manifestar infrutíferas, de tal forma que o Governo francês e o Governo espanhol já manifestaram à Comissão Europeia a sua elevada preocupação sobre a possibilidade de se obter uma reforma do Tratado alinhado com as ambições da luta contra as alterações climáticas.

Se nada acontecer de substancial, resta à União Europeia e aos Estados-membros saírem do Tratado, o que não é fácil dado que, em caso de denúncia de uma Parte Contratante, as disposições do Tratado continuarão a aplicar-se a investimentos feitos no território durante um período de 20 anos a contar da data em que a denúncia produz efeitos, independentemente do tempo de vida dos investimentos.

A situação é complexa do ponto de vista político, e só uma posição de força dos Estados-membros e da União Europeia poderá por um fim às amarras deste Tratado que é um verdadeiro entrave ao futuro comum que todos ansiamos, e pelo qual corremos o risco de ter de pagar duas vezes: os novos projetos sem emissões e os velhos fósseis. Espera-se do governo de Portugal uma atitude consentânea com a defesa da neutralidade carbónica a que nos tem habituado.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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