Fome de escapismo

A fome de escapismo que creio não ser exclusivamente minha não é uma necessidade de fuga dos nossos espaços habituais. É antes uma fuga a tudo o que nos é demasiado familiar.

Quando a vida nos oferece um extremo, é mais ou menos inevitável que nos lancemos ao seu oposto dentro em breve. Após meses e meses de confinamento forçado, o instinto grita-nos uma exigência de liberdade. E não se trata de revolta contra o estado das coisas ou de um statement político, mas antes uma necessidade básica da condição humana.

Depois de um ano a esbarrar nas paredes das nossas moradas, é absolutamente natural a necessidade de fuga aos ambientes que mais nos são familiares, como a padaria da esquina ou o talho do senhor Miranda, já para não falar do nosso chão, que já conhecemos de cor, ou da conta da Netflix, na qual mergulhámos tanto que já lhe achámos a fossa das Marianas.

Nasce então uma fome de escapismo difícil de conter – e à qual temos de saber resistir com uma dose generosa de sensatez. Mas, em simultâneo, ceder-lhe. Há meia dúzia de dias, zarpei para a aldeia dos meus avós, uma povoação que nem sequer vem nos mapas. Não apenas movido pelas saudades dos anciãos, já de vacina tomada, mas também pelo sufoco para a saúde mental que se tem demonstrado viver numa zona urbana, cheia de gente nem sempre cautelosa, e confinado a algumas paredes das quais já estou saturado ao ponto de as querer escaqueirar com uma chave de fendas e de andar a puxar o Gustavo Santos que há em mim para remodelar todas as divisões do apartamento. A fuga é sempre a salvação mais à mão, todavia.

Para chegar à aldeia dos meus avós, temos de percorrer duas auto-estradas, um itinerário complementar e mais um chorrilho de estraditas com curvas capazes de nos fazer inspeccionar o conteúdo do nosso pequeno-almoço no alcatrão ou no banco de trás, e o prémio pela viagem é um vale bucólico, virtualmente incessível, onde a banda sonora é o marulhar intenso e constante do riacho que o atravessa. As casas mal passam as duas dezenas, quase todas desabitadas, e ganhamos a consciência de que o paraíso existe. Quanto mais não seja, pelo alívio que as montanhas nos oferecem. Foi após subir uma montanha com a altura equivalente a cinquenta e seis andares – disse-me o meu telefone, e eu acredito nele – que me dei conta deste feito inédito, desta fome de fuga que nunca antes me havia tocado o espírito.

As rotinas das quarentenas mais do que necessárias têm-nos feito aprender muitíssimo sobre nós próprios: se, há apenas duas mãos cheias de meses, eu julgava não ter grandes apetências pela ideia de viajar, dou agora por mim a querer fugir para lugares aparentemente inóspitos, afastados da civilização, onde as fronteiras não são marcadas pelos prédios que se agigantam diante dos meus olhos ou das circunscrições que vêm nas notícias de jornal. E intriga-me esta necessidade absolutamente nova, particularmente porque os ambientes que me deixavam mais confortável eram precisamente os urbanos.

Provavelmente, a fome de escapismo que creio não ser exclusivamente minha não é uma necessidade de fuga dos nossos espaços habituais. É antes uma fuga a tudo o que nos é demasiado familiar, numa era em que o familiar está saturado, desgastado e usado até à exaustão. Incluindo, claro, a voz que nos povoa a mente, inundando-nos a solidão tomando a forma habitual de hostilidade e inimizade, vociferando ininterrupta todo e qualquer medo que sempre nos assolou, outrora calado e inofensivo. Estamos fartos do que somos, e por isso precisamos de fugir. E não há mal algum nisso. Fujamos, num equilíbrio domesticado entre loucura e sensatez.

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