O futebol morreu, paz à sua alma

A Superliga Europeia é uma proposta absurda que cria uma espécie de direito de acesso natural e vitalício de determinados clubes a uma competição, deixando de fora quaisquer considerações de mérito e equidade.

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Reuters/SUSANA VERA

De acordo com as mais brilhantes cabeças da FIFA e da UEFA, quem não se declarar frontalmente contra a criação de uma Superliga Europeia está a contribuir para a destruição do futebol. Esta é a forma relativamente neutra e polida de dizer a coisa. A outra, porventura mais cáustica, mas nem por isso menos verdadeira, é esta: os responsáveis das instituições que mais corromperam a imagem do futebol nas últimas décadas arvoram-se agora em nobres e corajosos defensores dos fracos e oprimidos. Os cínicos dirão que apenas o fazem porque sentem o enorme bolo das receitas bilionárias a desaparecer...

Os mesmos cínicos dirão que o funeral do futebol vem com muito tempo de atraso e que desde que os bolsos inesgotáveis de petrodólares invadiram alguns dos principais campeonatos europeus, distorcendo por completo as competições e relegando para segundo plano a história e a cultura popular dos clubes, o futebol como o conhecíamos desapareceu e a lógica dos milhões tornou-se o único modo de fala possível.

É difícil ter uma discussão séria sobre o estado do futebol e levar a sério os que agora rasgam as vestes de indignação, quando por exemplo três dos quatro clubes presentes nas meias-finais da Liga dos Campeões só existem e têm expressão porque uns tipos com fortunas de origem obscura se lembraram que a forma mais exótica de lavarem o seu dinheiro passava pelo seu investimento num clube de futebol. Desta forma, e sem qualquer espécie de mérito desportivo associado (uma das principais críticas atiradas ao projecto da Superliga Europeia), estas e outras agremiações sem dimensão, sem palmarés e em alguns casos sem massa adepta relevante, desvirtuaram por completo as regras da competição e da concorrência e deram o pontapé de saída para a selvajaria demencial que é o actual mundo do futebol-negócio, que teve no último domingo um desenvolvimento certamente infame e inaceitável, mas não mais infame e inaceitável do que outros episódios que têm demonstrado a arquitectura anticoncorrencial, antidesportiva e mesmo criminosa do futebol-negócio tutelado pela FIFA e pela UEFA.

Por isso, a dicotomia que se tem criado nos últimos dias entre bons e maus da fita, pertencendo a UEFA e a FIFA ao primeiro grupo, é manifestamente absurda se olharmos não só para a complacência com o estado miserável a que o futebol-negócio nos conduziu, mas também para a quantidade de escândalos, negociatas mafiosas e mesmo casos de corrupção que têm infestado aquelas instituições dominadas desde sempre por problemas de falta de transparência. Decisões inenarráveis, criminosas mesmo, atendendo às consequências, como a atribuição do próximo Mundial ao Qatar ou a falta de penalizações severas para clubes que reiteradamente não cumprem as regras destroem mais a credibilidade do futebol do que o anúncio de dez superligas europeias.

Significa isto que a nova competição europeia é uma boa ideia? De forma alguma. É uma proposta absurda que cria uma espécie de direito de acesso natural e vitalício de determinados clubes a uma competição, deixando de fora quaisquer considerações de mérito e equidade. Mas, passe-se o que se passar, floresça este capricho egomaníaco ou não, a discussão fundamental será sempre sobre o que o futebol pode fazer por eles (mais milhão para ti mais milhão para mim) e não sobre o que eles podem fazer pelo futebol. Assim sendo, o futebol não morreu porque já estava morto antes. Paz à sua alma.

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