A pandemia devolveu-me as estações do ano

Ao longo de um ano inteiro pude perceber como, até aqui, tão perto do centro da cidade, o frio, a chuva, o sol e o calor, vão alterando dia a dia a paisagem.

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LUSA/PEDRO SARMENTO COSTA

Não sei se já vos aconteceu, mas por aqui era uma conversa recorrente nos meses de Inverno. Sempre que o frio apertava, a exigir gorros e cachecóis, lá me começava a lamentar por, agora, já não ver os campos brancos de geada que me costumavam acompanhar no caminho para a escola. Sentia falta deles, daquela brancura matinal que confirmava que o frio que sentia nos ossos era mesmo real e estava ali, estampado na paisagem. A pandemia devolveu-me a geada. E a forma como a natureza muda com o passar do tempo. A pandemia devolveu-me as estações do ano.

Isto porque a geada nos campos não tinha desaparecido. Eu é que tinha deixado de me cruzar com campos, à medida que a construção da cidade os foi engolindo. De casa para o trabalho, sempre através de paralelo ou asfalto, de um edifício para outro, com prédios, praças, semáforos e apenas pequenos jardins como envolvente, perdera a ligação com a transformação que continuava a ocorrer fora desses caminhos. O exercício físico era dentro do ginásio, onde não há espaço para geada, nem para cogumelos, flores coloridas ou crias de animais.

Foi quando a pandemia fechou o ginásio (um pouco antes disso, realmente, porque deixei de ir antes de ele fechar) que recuperei a geada. E tudo o mais que as mudanças ao longo do ano trazem. Troquei o espaço fechado pelo eco-caminho da minha cidade, que serpenteia entre arvoredo e campos de cultivo, com cavalos e ovelhas a ocuparem algumas faixas de terreno. E ao longo de um ano inteiro pude perceber como, até aqui, tão perto do centro da cidade, o frio, a chuva, o sol e o calor, vão alterando dia a dia a paisagem.

Voltei a ter campos cobertos da brancura da geada. Se ia muito cedo, havia dias em que as sapatilhas resvalavam na camada de gelo que cobria o caminho. Parava para fotografar plantas e flores delicadamente cobertas por cristais brancos, do frio que se lhe colava às folhas e às pétalas. Os campos, na sombra, eram tapetes esbranquiçados. Afinal, continuava tudo a acontecer como quando eu era pequena.

Antes da geada, foram os cogumelos a anunciar o Outono. E as folhas caídas que cobriam o solo, fazendo barulho sob os meus pés, quando as calcava. Percebi que determinados cogumelos só nasciam numa certa área do caminho, apesar de estarmos a falar de uma extensão de pouco mais de três quilómetros, e que mesmo entre os dois lados da via, havia diferenças. Pude recordar-me de como é bom caminhar à chuva e a não me esquecer de levar muita água e um chapéu nos dias de muito calor.

O campo de milho já passou por todas a fases do seu desenvolvimento ao longo do ano — já esteve despido, coberto de cereais que o aconchegam antes da plantação a que se destina, ficou vazio de novo, marcado pelos sulcos do tractor que preparou o solo para a plantação e esteve coberto das espigas verdes e douradas que crescem bem acima da minha cabeça.

E as flores são imensas, crescem em qualquer lado, e têm dezenas de cores. Não são todas iguais ao longo do ano. Nada disso. Há algumas que florescem mesmo no Inverno, outras que só agora estouram em arbustos rosa e amarelos. As papoilas laranja já estiveram sozinhas numa encosta da beira da estrada, agora estão quase escondidas pelas ervas que cresceram à sua volta.

E depois há o canto dos pássaros. Não sei se ele muda durante as estações, só agora comecei a prestar-lhe mais atenção, mas há quatro, cinco variedades a fazer-se ouvir. Para já não falar dos melros que, por esta altura, saltitam por todo o lado, e do pisco-de-peito-ruivo que parece gostar mais de aparecer quando o frio se instala. Este fim-de-semana, por exemplo, reparei que duas das éguas que estão sempre num dos campos do caminho estavam acompanhadas por potros que não lhes largavam a sombra. São bebés novos da Primavera.

Olhar para o céu, no meio do arvoredo, é toda um livro aberto sobre o passar do tempo. Dos ramos que se estendem despidos, formando teias intrincadas lá em cima, no Inverno, aos castanhos e dourados que enchem as copas e se estatelam no chão, até à exuberância verde que, por estes dias, mal deixa ver o que está para lá dos plátanos, carvalhos e outros exemplares que por ali há.

São pouco mais de três quilómetros bem perto do centro da cidade. Para os fazer todos é preciso atravessar ruas abertas ao trânsito e até passar por baixo de um viaduto sempre cheio de actividade, mas tudo o mais vai mudando ao ritmo das estações. Como sempre. Foi apenas preciso mudar um pouco os caminhos de todos os dias para perceber que, afinal, a geada nunca se foi embora.

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