Ainda o elevador social

Medidas como a criação de um contingente especial de alunos das escolas TEIP no acesso ao ensino superior podem, transitoriamente, contribuir para reduzir desigualdades, mas não substituem um conhecimento sistemático e uma ação mais fundamentada que permitam reparar consistentemente o “elevador social”.

No passado dia 8 de janeiro o PÚBLICO publicou online um artigo meu sobre o acesso ao ensino e o objetivo da redução das desigualdades que existem atualmente, uma preocupação subjacente à recomendação sobre o acesso ao ensino superior e a articulação com o ensino secundário, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em novembro do ano passado. No artigo defendia a necessidade de reformar o acesso ao ensino superior e a articulação com o ensino secundário, em particular com os cursos científico-humanísticos, com o objetivo de melhorar a aquisição pelos alunos de competências essenciais e contribuir para o chamado “elevador social”.

As desigualdades com impacto no sucesso ou insucesso educativo são um assunto já muito estudado. No entanto, não só os dados disponíveis em Portugal para avaliar os fatores que condicionam o acesso ao ensino superior são limitados, como as medidas para corrigir o que se conhece são escassas.

Os dados de que disponho não permitem uma imagem completa dos diferentes fatores geradores de desigualdade. Mas o impacto da qualificação dos progenitores no acesso ao ensino superior é claro. A percentagem de novos inscritos no 1.º ano do ensino superior em 2017/18 com o pai ou a mãe com qualificações superiores é significativamente mais elevada do que a dos cidadãos com esse mesmo nível de formação entre os 45 e os 64 anos – idades mais comuns dos progenitores desses alunos. Enquanto os novos estudantes com o pai ou a mãe com formação superior eram 29% e 36%, respetivamente, os homens e as mulheres com idades entre 45 e 64 anos e formação superior eram 14,5% e 20,2%, respetivamente. A diferença é especialmente acentuada nos estudantes do ensino universitário, onde os novos inscritos com pai ou mãe com formação superior eram, respetivamente, 40% e 45% no privado e 35% e 43% no público.

As diferenças entre o ensino politécnico e o universitário são significativas. Por exemplo, no ensino público os estudantes com o pai com ensino superior eram 35% no universitário e 18% no politécnico. De acordo com um estudo de há alguns anos, referido no Edulog de julho de 2019 sobre “Equidade no acesso ao ensino superior”, 73% dos alunos de medicina eram filhos de pais com ensino superior, enquanto 73% dos estudantes de enfermagem e tecnologias da saúde eram filhos de pais sem qualificações de nível superior.

Estes dados apenas nos dão a relação entre a qualificação académica dos pais e o ingresso no ensino superior, mas devem fazer-nos pensar sobre outros fatores que condicionam as oportunidades de ingresso. As condições socioeconómicas das famílias ou dos próprios, o local de residência, a etnia ou a deficiência têm influência em todo o percurso anterior, designadamente educativo, e na probabilidade de atingir o ensino superior. A distorção da composição social do corpo estudantil a favor dos mais favorecidos é o efeito de todo um conjunto de oportunidades desde a nascença. É por isso que a igualdade de oportunidades, ideia amplamente aceite como justa, se não pode limitar à igualdade pontual nos critérios e provas de acesso, sob pena de ser injusta.

Para corrigir coerentemente as desigualdades é necessário ter dados que permitam conhecer a situação real e definir metas calendarizadas que balizem a intervenção. É por esta razão que na Recomendação do CNE sobre “O acesso ao ensino superior e a articulação com o ensino secundário” se defende “[a] avaliação da representatividade social do corpo estudantil nas instituições de ensino superior, designadamente no que se refere aos efeitos discriminatórios da situação socioeconómica familiar e individual, de etnia, de deficiência, do local de residência ou outros que venham a ser identificados como relevantes, bem como os resultados das políticas de inclusão e de aprendizagem ao longo da vida, identificando medidas que visem a sua correção, fixando metas a atingir até 2030”.

As metas a fixar deverão ter em conta as várias dimensões em que se exprimem as desigualdades. No caso da qualificação académica dos pais, por exemplo, poder-se-ia fixar como meta para 2030 reduzir para metade ou um terço a atual diferença entre as qualificações dos pais dos novos alunos e as da população com idade correspondente, com atenção especial ao ensino universitário pela distorção que apresenta.

Apesar de ter havido progressos, a educação não pode, por si só, contrariar todas as desigualdades. A redução muito significativa das taxas de retenção leva a que mais jovens cheguem ao final do ensino secundário e a criação de vias para que os alunos dos cursos profissionais acedam ao ensino superior são fatores favoráveis à redução das desigualdades.

As condições financeiras das famílias dos meios mais desfavorecidos limitam as oportunidades que podem proporcionar aos seus jovens, desde apoios ao desempenho escolar, como explicações, o acesso a bens culturais, à participação em atividades extraescolares várias, viagens, etc. Os salários em Portugal ainda são baixos e há muitas famílias com dificuldades em satisfazer os seus compromissos regulares. O documento publicado recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos indica que, em 2018, “11% de todas as pessoas empregadas em Portugal vivem em situação de pobreza”. Por outro lado, o salário mediano era, em 2019, 1,64 vezes o salário mínimo, relação que tem vindo a diminuir desde o início do século. Ou seja, em 2019 metade dos trabalhadores auferia menos de €1000 mensais.

O que a educação pode fazer é multifacetado. Desde o apoio à primeira infância e às condições do pré-escolar e das escolas localizadas em meios económica e socialmente desfavorecidos, para as quais existe atualmente o programa TEIP, à orientação escolar e aos critérios usados na seleção e seriação no acesso. No Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025, que se encontra em discussão pública, aponta-se para a definição de “um contingente especial de alunos das escolas TEIP no acesso ao ensino superior e cursos técnicos superiores profissionais”.

Para além dos meios materiais, como escolas com melhores condições físicas, meios informáticos, bibliotecas, recursos para desporto e visitas de estudo, refeições escolares, etc., importa continuar a combater o abandono precoce, intervir aos primeiros sinais de dificuldade nos percursos escolares, oferecer aos alunos oportunidades culturais e promover nos jovens a ambição de chegar mais longe na sua formação.

Os critérios usados no acesso ao ensino superior têm influência na representatividade social do corpo estudantil do ensino superior. Não sendo possível eliminar completamente as desigualdades com que os candidatos se apresentam ao ensino superior, alguns países utilizam critérios de correção em função das condições socioeconómicas, do local de residência, da escola frequentada, entre outros. A correção das desigualdades, para ser justa, tem de se basear em estudos que identifiquem as causas e proponham soluções, avaliando os seus efeitos, vantagens e inconvenientes, assim como prevejam uma introdução progressiva e acompanhada.

Medidas como a criação de um contingente especial podem, transitoriamente, contribuir para reduzir desigualdades, mas não substituem um conhecimento sistemático e uma ação mais fundamentada que permitam reparar consistentemente o “elevador social”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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