Fantasmas Irlandeses

No passado domingo, a violência voltou em força à cidade de Derry, onde um cidadão se encontra em estado grave depois de ter sido baleado pela polícia na sequência de mais confrontos.

No momento em que os britânicos se despedem do príncipe Filipe, a região mais conturbada do reino é tomada de assalto pelos fantasmas do passado. Os recentes confrontos em várias cidades da Irlanda do Norte têm relembrado o mundo que na Europa a dimensão étnica dos nacionalismos está muito viva e irá impactar a política nos anos vindouros.

A violência sectária tem afetado grande parte do território norte-irlandês onde os unionistas são maioria, desde a histórica cidade de Carrickfergus, inspiradora da nostálgica música tradicional irlandesa com o mesmo nome, até aos bairros da capital. O Muro de Berlim caiu em 1989, mas ainda existe um muro em Belfast que separa os irlandeses católicos da comunidade britânica protestante, descendente sobretudo de colonos ingleses e escoceses das low lands que, até há pouco tempo, eram os donos e senhores do território.

A violência que começou no passado mês de março deve-se em grande parte ao culminar de um debate político insatisfatório sobre o Protocolo da Irlanda Norte – uma regulamentação que simultaneamente mitiga a fronteira com a República da Irlanda, mas reforça a fronteira com o Reino Unido, nomeadamente com a imposição de entraves alfandegários na transação de bens entre as duas regiões separadas pelo Mar da Irlanda. O famigerado protocolo provocou o ódio dos unionistas, que se sentiram traídos e abandonados pelo facto de Londres ter negociado a regulamentação com a União Europeia à revelia dos seus interesses.

Outro acontecimento que marcou os últimos meses da política irlandesa foi o funeral de Bobby Storey. “Big Bobby”, para os amigos, foi um dos líderes mais carismáticos e influentes do Sinn Féin e do IRA, ganhando o estatuto de lenda quando protagonizou a maior fuga da prisão e o maior assalto a um banco da história britânica. A marcha fúnebre, que juntou cerca de duas mil pessoas, deixou a comunidade unionista indignada; a versão oficial desta indignação é a de que as regras de distanciamento social, devido à atual pandemia, não foram respeitadas, mas a verdadeira causa foi a demonstração de força apresentada pelos nacionalistas irlandeses, simbolizando a imortalidade e renovação da sua luta apesar da mortalidade dos seus líderes.

No submundo da Irlanda do Norte, existem ainda outras condicionantes que influenciam os acontecimentos atuais. Tal como o IRA era sobejamente conhecido pelo tráfico de armas, os grupos paramilitares unionistas são apontados pelas autoridades policiais como os senhores do tráfico de droga e criminalidade associada, que tem sido fortemente atacada pela polícia britânica. Apesar do LCC (Loyalist Communities Council), um conselho que reúne representantes de organizações unionistas paramilitares, ter anunciado publicamente que os seus membros não apoiam diretamente ou indiretamente a dimensão violenta dos protestos, têm-se tornado credíveis as suspeitas de que os principais grupos paramilitares (nomeadamente a UDA e a UVF) estão a castigar as autoridades policiais pela perseguição de que têm sido alvo.

O falecimento do Duque de Edimburgo mereceu o natural respeito da comunidade unionista e os ânimos apaziguaram por breves momentos. Contudo, no passado domingo a violência voltou em força à cidade de Derry, onde um cidadão se encontra em estado grave depois de ter sido baleado pela polícia na sequência de mais confrontos.

Se há 23 anos atrás o Acordo de Sexta-Feira Santa pacificou a região, o Acordo do Brexit despertou os fantasmas de um passado muito presente (quem já visitou Dublin e Belfast sente a diferença de ambiente entre as duas cidades, sem precisar de ler um livro de história). A política não tem dado a resposta que os unionistas pretendem e quando assim é, são procuradas soluções por outras vias; o mesmo aconteceu do outro lado da barricada, a partir da década de 60 do século XX até 1998, quando os nacionalistas irlandeses seguiram a via da violência, forçando a sua entrada no debate político que lhes estava vetado.

É esperado que o Protocolo da Irlanda do Norte seja aperfeiçoado pelo Reino Unido e União Europeia, considerando a especial cooperação da República da Irlanda. Contudo o Brexit é um acontecimento político, económico e social demasiadamente impactante para não deixar marcas profundas em regiões com movimentos secessionistas maduros, como a Irlanda do Norte ou a Escócia.

Vários adolescentes unionistas tiveram o seu batismo de fogo nos confrontos das últimas semanas, tal como o falecido Bobby Storey teve a sua iniciação no IRA com 16 anos, há cinquenta anos. Enquanto Londres e Bruxelas não apresentarem uma solução política mais eficaz, as ruas de Belfast e de outras cidades norte-irlandesas continuarão a fazer ouvir a sua voz.

Sugerir correcção
Comentar