Capitalismo nos outros é refresco

Esta Superliga europeia de futebol é apenas mais um exemplo do funcionamento normal do capitalismo e dos mercados: a tendência para a formação de monopólios e oligopólios, em que vence quem tem muito dinheiro e poder, e é esmagado quem tem menos.

Uma das características intrínsecas, e mais notáveis, do capitalismo é sua capacidade de expansão. Uma espécie de tendência imperialista, no sentido de ser capaz de se intrometer nas mais diversas áreas da vida individual e colectiva. Se é verdade que o capitalismo se iniciou nas actividades industriais, comerciais e profissionais, rapidamente se expandiu para todos os outros domínios, desde os culturais e artísticos, passando pelos desportivos, até à esfera mais íntima.

Não é por acaso que a nossa vida pessoal é, hoje, cada vez mais capitalista. Isto é, dominada por empresas e pela lógica capitalista da competição e do lucro. Isso é visível pelos sítios onde expressamos as nossas ideias (redes socias privadas), onde contactamos com os nossos amigos (outras vez as redes socias e diferentes espaços privados de diversão), até aos sítios onde encontramos parceiros sexuais e afectivos (os Tinders desta vida).

Vem isto a propósito da criação de uma Superliga europeia de futebol, uma iniciativa de uns quantos clubes mais ricos da Europa, que pretendem criar uma liga fechada, que seja a reunião dos grandes clubes, dos grandes jogadores e das grandes receitas. Esta Superliga mais não é do que o corolário lógico da aplicação da dinâmica capitalista à esfera do futebol profissional. Aliás, o que tem acontecido ao futebol, desde a sua criação enquanto desporto amador até à contemporânea empresarialização, mais não é do que uma progressiva transformação capitalista (quantos clubes já não pertencem aos associados, mas apenas a multimilionários estrangeiros, tantas vezes com riqueza de origem duvidosa?).

Mesmo o actual formato da Liga dos Campeões já se aproxima de uma Superliga europeia (as ligas mais ricas estão sobre-representadas e só os mais ricos ganham, com a excepção do Futebol Clube do Porto em 2004). Aquilo que estes clubes, agora, decidiram fazer foi dar o (pequeno) passo lógico seguinte, no sentido de tornar essa competição o mais rentável possível, à luz do que sucede nas grandes competições desportivas norte-americanas, que há muito seguem a lógica empresarial (desde a NBA até à UFC).

No meio de tudo isto, é engraçadíssimo ver muitos que tanto pugnam pelo aprofundamento do papel das empresas, pela retracção do Estado e pelas virtudes da livre iniciativa privada, rechaçar, com repugnância, esta iniciativa empresarial. E fazê-lo, argumentando que os clubes menos ricos vão ser prejudicados, que os adeptos vão ser prejudicados, que o futebol, em geral, vai ser prejudicado. Como assim? Não terá esta Superliga jogos interessantíssimos? Não atrairá, esta Superliga, milhões de telespectadores? Se esta Superliga for um sucesso financeiro, será o mercado a dizer que as pessoas gostam dessa Superliga, preferem essa Superliga.

O capitalismo é assim, os mercados livres são assim: o consumidor, perante as alternativas oferecidas, escolhe, e com o seu comportamento (neste caso, a audiência televisiva destes jogos) determina o sucesso dos negócios.

E sim, para o capitalismo europeu e mundial, clubes como o Futebol Clube do Porto, o Benfica ou o Sporting são irrelevantes. Se desaparecerem, quem se importa? Os milhões de espectadores europeus e mundiais (que esta liga está feita a pensar na assistência mundial), que querem jogos de alta qualidade, não se interessam com tais minudências como os clubes portugueses.

Sempre achei que o desporto e o futebol dão exemplos interessantes para mostrar alguns efeitos de modelos político-económicos. Um paradigma é a NBA, que acaba por ser muito mais competitiva do que a Liga dos Campeões, por causa da imposição de regras socialistas como as do draft e dos tectos salariais. Agora, esta Superliga, um passo lógico no capitalismo futebolístico, parece apanhar alguns em contrapé.

Costuma-se dizer “com o mal dos outros posso eu bem”. No caso do capitalismo, só quando bate à porta dos nossos interesses é que nos lembramos dos seus perigos.

De facto, é muito bom quando podemos desfrutar de viagens de avião a 10 €. Já não é nada bom quando somos pilotos dessas companhias e ganhamos salários muito menores do que o das companhias não “low cost”. É muito bom irmos buscar produtos às “lojas do 1€” quando não somos nós a trabalhar 16 horas numa sweatshop num qualquer país subdesenvolvido.

Até os principais actores do capitalismo, os empresários, adoram navegar nos “oceanos azuis” (quando se é monopolista ou oligopolista) e fogem dos “oceanos vermelhos” (da concorrência muito forte e das margens de lucro irrisórias).

Os canais de TV em sinal aberto em Portugal, são um exemplo paradigmático. As guerras constantes entre a TVI e a SIC para ver quem fica líder, logo com mais lucros, operam-se num mercado duopolista, um privilégio concedido pelo Estado. Se falarmos com os donos da TVI e da SIC sobre concorrência e livre iniciativa empresarial, eles vão proclamar as habituais loas ao sistema de mercado. Porém, se defendermos a concessão de mais licenças para canais em sinal aberto, cairão sobre nós como leões. Lá esta: a concorrência nos outros é bonito, quando nos toca a nós…

Confesso que ainda não vi as reacções da Iniciativa Liberal, dos seus acólitos e de todos os pregadores da iniciativa privada acerca desta Superliga. Mas a única coisa que podem fazer, se tiverem honestidade intelectual, é aplaudi-la.

Todos os outros, os que sempre perceberam os perigos que o mercado não regulado acarreta para a vida social, têm toda a legitimidade para criticar esta Superliga.

Esta Superliga é apenas mais um exemplo do funcionamento normal do capitalismo e dos mercados: a tendência para a formação de monopólios e oligopólios, em que vence quem tem muito dinheiro e poder, e é esmagado quem tem menos. Ou seja, o contrário da meritocracia, da defesa da dignidade social e da igualdade de oportunidades.

Quem está contra esta Superliga por questões como a justiça, a igualdade de oportunidades, a meritocracia ou a não subjugação de todos os valores à ganância, é boa altura para abrir os olhos e perceber o mundo em que vivemos e para onde nos dirigimos.

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