O que põe os cabelos em pé aos avós

Os pais sempre protegeram os filhos o máximo que puderam, e sempre lhes custou muito deixá-los voar longe da vista.

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@designer.sandraf

Ana,

Fiz uma sondagem entre os avôs, sobre aquilo que mais lhes põe os cabelos em pé na “parentalidade” da nova geração e a unanimidade espantou-me: têm dificuldade em suportar a protecção excessiva, a aversão ao risco.

O divertido foi que incitados a responder à minha questão, estes homens embarcaram numa viagem nostálgica a um passado de bons selvagens, em que brincavam na rua, saíam de manhã e só voltavam à hora do jantar sem que ninguém se preocupasse com onde estavam, iam para a escola sozinhos, até no primeiro dia de aulas, e por aí adiante. Muito sinceramente, tendo conhecido bem as mães de alguns dos meus entrevistados, duvido da total veracidade das reminiscências, porque a mim pareciam-me bastante controladoras, mesmo quando avaliadas pelos padrões actuais, mas talvez me engane.

Talvez não exagerem muito quando dizem que tinham uma liberdade de movimentos que os miúdos agora não têm, e é verdade que o telemóvel se pode ter tornado num braço avançado dos pais sobre os filhos, mas curiosamente não se parecem interrogar sobre se será mesmo assim. É porque, repara, Ana, os pais de que falam são os seus próprios filhos, e se realmente tivessem sido criados com experiências tão positivas de liberdade, não seria natural que os seus filhos também as tivessem? E não prescindissem delas quando chegasse o momento de as oferecer aos seus próprios descendentes?

Sabes do que suspeito? Que é uma nostalgia de tempos que nunca foram, como costumo dizer. Porque, ponto 1, os pais sempre protegeram os filhos o máximo que puderam, e sempre lhes custou muito deixá-los voar longe da vista. É claro que a experiência (e o cansaço) jogavam a favor dos mais novos, assim como o facto de viverem muitas vezes em lugares pequenos, ou em bairros onde toda a gente se conhecia, mas nunca, julgo eu, com este grau de liberdade que imaginam. Ponto 2, o trabalho de nos “livrarmos” dos pais é basicamente uma função dos filhos — não é por acaso que a adolescência saudável é conturbada. Ponto 3, mesmo os avôs que agora falam assim, provavelmente apanharam alguns sustos (para lá dos sustos que todos temos de apanhar), que lhes fizeram mais mal do que bem, embora felizmente tenham tido a capacidade de os integrar na sua vida, ao ponto de os terem enterrado. Mas nem sequer muito fundo, porque quando os interroguei mais a fundo não foi difícil encontrá-los.

Falta ainda ressalvar uma coisa: falam de uma experiência que, pelo menos para as raparigas, sobretudo de meios pequenos, era uma miragem. O medo do abuso, da opinião dos vizinhos e da “má-fama” e, mais tarde, de uma gravidez, limitavam-lhe dramaticamente a vida.

Dito tudo isto, concordo completamente que para os avós, no feminino e no masculino, é supinamente irritante assistir à “bebificação” dos seus netos, a vê-los privados de momentos que nos deram tanta felicidade, desde o subir à árvore mais alta até viajarmos sozinhos de autocarro para um lugar mais distante, engolindo o medo, para depois nos orgulharmos de termos sido capazes. E sim, mais vale esfolar joelhos, e correr o risco de apanhar uma qualquer bactéria, do que nunca ter rompido umas calças, mais vale conversar com todos os vizinhos, do que viver aterrorizado com receio de que sejam pedófilos...

Ui, onde esta carta já vai.

Beijinhos cheios de saudades de vos ver a todos em carne e osso.


Querida Mãe,

Também estamos mesmo cheios de saudades!

Adorei a sua investigação e ainda mais dos seus insights. Concordo com tudo! Mas, há uma questão que é abordada naquele livro espectacular Descalços e Felizes que também pode explicar porque é que pais (e avós) glorificam o facto de a sua infância ter incluído natureza, liberdade e risco, mas depois não a proporcionem aos seus filhos. Segundo a autora, Angela Hanscom, os pais têm vindo a acreditar numa narrativa de que o mundo está pior, mais perigoso, mais incerto. Com o crescente acesso a notícias e histórias de todos os cantos do mundo (muitas delas falsas ou descontextualizadas), esta nova geração acredita que era ideal deixar as crianças terem mais natureza, mais oportunidades de brincar sozinhas e mais possibilidade de risco, mas que em sendo o ideal, pura e simplesmente não é possível. Juntando a isto uma pandemia e temos mesmo o caldo entornado.

A autora assegura, no entanto, que todos os estudos sérios e profundos provam o contrário — não houve aumento da criminalidade, não há aumento de raptos, as nossas ruas não estão mais perigosas. E, sendo assim, cabe-nos trabalhar conscientemente os nossos medos para não privarmos os nossos filhos de algo que é crucial para o seu desenvolvimento (e para a sua felicidade).

É que repare, mãe, como isto se transforma numa pescadinha de rabo na boca: os pais têm mais medo, por isso, os miúdos não podem explorar sozinhos. Teoricamente restava a hipótese de o explorarem na companhia dos pais, mas os pais têm menos tempo, e estão mais cansados, e por isso com muito pouca vontade de o explorar com eles, apesar de fazerem um esforço enorme nesse sentido. O resultado são crianças com mais ansiedade, menos motricidade, menos capacidades de gestão de risco e com excesso de energia.

Como dar a volta a isto? Com passeios só com os avós, claro! Quando é que os vem buscar?


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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