Football’s darkest secret

Para que no futuro não haja mais abusos, e para que no futuro as crianças não tenham medo de apontar o dedo a quem se acha acima de qualquer suspeita, Andy Woodward, David White, Steve Walters e Paul Stewart dão a cara, sem mais vergonha, sem mais medo.

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Trystan Lothaire/Unsplash

Football’s darkest secret é o nome do documentário da BBC responsável por dar voz a Andy Woodward, David White, Steve Walters e Paul Stewart. 

Em comum estes quatro homens têm não apenas o facto de terem jogado futebol a nível profissional, como tantos milhares de outros jogadores da sua geração, mas o facto de, uma vez finda a carreira, terem tido a coragem de vir a público falar sobre os abusos sexuais sofridos às mãos de Barry Benell e Frank Roper, ambos treinadores de infantis e iniciados entre os anos 70 e 80.

Andy Woodward foi o primeiro a quebrar o anonimato e as suas palavras não são apenas um apelo, são a verdade dos factos: “Existem centenas de casos como o meu. Mais. Existem milhares”. A coragem destes homens é proporcional à dor e às lágrimas derramadas enquanto um a seguir ao outro dão a conhecer o sofrimento e martírio de anos. Sofrimento vivido a sós com o óbvio impacto no fim prematuro das suas carreiras, tal o trauma em corpos e mentes não apenas incapazes de partilhar mas impedidos pela sociedade de então de partilhar tudo quanto haviam vivido e perdido.

Afinal, tanto Bennell como Roper eram treinadores de renome, tendo no currículo a formação de jogadores de topo. Com uma reputação de anos, estes formadores tinham em si a plena confiança dos pais sempre que se propunham a levar os futebolistas do amanhã para estágios durante as férias e os fins-de-semana.

Diante destras estrelas da formação futebolística, as crianças, os rapazes, nada podiam fazer. No mínimo, teriam de viver a humilhação de quem tem de revelar os abusos sofridos, tão horripilantes como incrédulos. E no fim seria sempre a sua palavra contra a de adultos conceituados sobre os quais nunca cairia a menor suspeita. 

Porque, quer queiramos ou não, este é um mundo onde o jogador representa o estereótipo da virilidade e masculinidade, testosterona sobre pernas e o exemplo maior de força e agressividade em justaposição à intolerância, medo, incompreensão, ignorância e rejeição de quem muitas vezes assiste das bancadas.

E se ainda é assim em pleno 2021, o que dizer dos anos 70 e 80? 

Neste ambiente, acusar um treinador não era senão ditar a sua própria sentença de morte, e não passo a expressão dadas as ameaças feitas por Bennell e Roper a quem sequer se atrevesse a pensar, quanto mais falar, sobre estes acontecimentos. 

Num beco sem saída terão sido centenas, não, milhares os rapazes abusados por estes homens ao longo de carreiras que os levaram a treinar os escalões inferiores entre Inglaterra, Espanha e Estados Unidos.

As consequências, físicas e mentais, estão bem presentes nas faces dos homens deste documentário, ainda hoje assombrados por depressão, ansiedade, abuso de álcool e drogas e tentativas de suicídio. As famílias, as suas famílias e os progenitores ainda presentes, vivem na culpa constante, que não é a sua, de terem deixado os filhos mais queridos vezes sem conta à mercê de abusos físicos, emocionais e sexuais. 

E se a verdade só agora vê a luz do dia, tal é o reflexo da dificuldade que é partilhar o sofrimento quando ainda se joga a nível profissional e adeptos, treinadores, empresários e dirigentes não têm nem a empatia nem muito menos o conhecimento e a experiência para lidar com estas situações.

E para que no futuro não haja mais abusos, e para que no futuro as crianças não tenham medo de apontar o dedo a quem se acha acima de qualquer suspeita, Andy Woodward, David White, Steve Walters e Paul Stewart dão a cara, sem mais vergonha, sem mais medo. 

Se Barry Bennell foi entretanto preso, já o mesmo não se pode dizer de Frank Roper, falecido em 2005, muito antes das presentes revelações. 

Fica aqui o apelo para que outros façam o mesmo. Entretanto contamos em mais de 800 o número de vítimas que desde então tiveram a coragem de falar às autoridades contra quase 300 suspeitos, e isto apenas no futebol inglês.

E nos outros países? E no resto do mundo? Mais do que nunca e especialmente agora urge dar a conhecer os casos de abuso. Em nome das milhares de vítimas a sofrer em silêncio. Em nome das crianças, os nossos filhos, que não merecem sofrer. Ninguém merece.

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