A saúde e o (tele)trabalho: da peste negra à covid-19

Sendo certo que a pandemia irá passar e as condições epidemiológicas retornarão ao “normal”, também é certo que, para muitos de nós, a forma de trabalhar apenas remotamente voltará a ser o que era. O teletrabalho veio para ficar.

Johannes Gutenberg foi o superspreader da revolução da informação. A sua invenção da máquina de impressão em tipos móveis, mais conhecida como imprensa, foi o primeiro grande passo tecnológico em direção à informação massificada que nos chega a casa. Começou na impressão de livros e progrediu, desde então, até à torrente de emails, videochamadas, webcasts, webinars e outros processados da nossa era digital.

No rescaldo da mais devastadora pandemia da história europeia, ocorrida na segunda metade do século XIV, sucedeu-se uma reorganização social que afetou o mercado de trabalho, bem como a relação do empregado com o seu empregador, passando pelas respetivas condições laborais. A Peste Negra virou do avesso a forma como vivíamos e trabalhávamos. Após a razia demográfica, que arrastou consigo muita da mão-de-obra disponível, iniciou-se um progresso tecnológico marcante, nomeadamente aquele que visava a melhoria da produtividade laboral. Uma das consequências mais prodigiosas desse avanço tecnológico foi, precisamente, a imprensa de Gutenberg (c. 1439).

É durante a pandemia das nossas vidas que assistimos a um pandemónio virtual que tem mudado sobremaneira o modo como vivemos e trabalhamos e, sobretudo, revolucionou a sua intersecção. Se houve um extenso período na cronologia dos seres humanos em que estes viviam onde trabalhavam, enquanto caçadores-recolectores, agora há uma inversão - é a vez do trabalho ir ter onde eles vivem, enquanto teletrabalhadores.   

Sendo certo que a pandemia irá passar e as condições epidemiológicas retornarão ao “normal”, também é certo que, para muitos de nós, a forma de trabalhar apenas remotamente voltará a ser o que era, parte do tal “novo normal”. O teletrabalho veio para ficar. Não haverá muito para discutir quanto a isso. Dever-se-á, sim, refletir (remotamente ou não) sobre o seu formato e sobre o impacto que terá nas nossas vidas. O teletrabalho domesticou-nos, porventura, de vez para muitos (domesticar vem do latim domus, que significa casa). É de extrema importância perceber em grande detalhe o que significa, ao certo, esta “domesticação”, designadamente no que diz respeito à nossa saúde.

É indubitável que o teletrabalho e o progresso tecnológico a si associado apresentam muitas virtudes, tanto para o empregador como para o empregado. O teletrabalho reduz custos, aumenta a produtividade (embora um estudo realizado na Universidade do Minho com dados nacionais tenha sugerido que esta questão não é linear e que está dependente do tipo de trabalho), massifica (ainda mais) a informação que nos chega a casa e aproxima-nos de qualquer reunião sem termos de nos inquietar com um trânsito impiedoso. O teletrabalho permite maior flexibilidade de horários e tarefas, uma maior ligação à família (em alguns casos, quiçá demasiada), momentos de maior descontração/concentração e criatividade (um estudo realizado pela Universidade de Ohio evidenciou que o trabalho remoto aumenta a produtividade nas tarefas mais criativas, enquanto reduz naquelas mais rotineiras) e permite ainda irmos beber um café sem corrermos o risco de nos cruzarmos com aquele colega mais maçudo.

Por outro lado, também é verdade que o teletrabalho suscita preocupação relativamente à saúde física e mental. Não obstante, ainda estamos numa fase muito embrionária para sabermos com rigor qual o efeito a médio-longo prazo do teletrabalho na nossa saúde.

Uma revisão da literatura disponível a este respeito foi recentemente publicada na revista BMC Public Health e levanta mais questões do que respostas cabais. A título de exemplo, e sem causar grande espanto, o impacto na saúde mental, como a ansiedade e a depressão, é complexo, com muitos fatores que influenciam ou intermedeiam a relação, pelo que a sua análise impõe particular vigilância e cautela. Entre esses fatores contam-se certamente o isolamento social, amplamente discutido neste período pandémico, e o technostress, que é outro neologismo que retrata o impacto psicológico negativo da intensificação das tecnologias de informação e comunicação – no fundo, um género de efeito dominó inaugurado por Gutenberg há uns tempos atrás.

A intensificação da utilização dos meios de comunicação digital advém, aliás, da nossa própria iniciativa. Ocorre no nosso cérebro libertação de dopamina (o neurotransmissor associado ao prazer e à gratificação) quando atualizamos a caixa de correio eletrónico ou abrimos o feed das redes sociais. Portanto, dedicamos um circuito neurológico de recompensa, aprimorado em milhões de anos de evolução como garante de sobrevivência e replicação, à expectativa de receber o que, muito provavelmente, se tratará de lixo digital e vídeos com gatinhos.

O teletrabalho e o (ainda maior) excesso de exposição ao digital podem ter um impacto nas aptidões cognitivas, que merecem a nossa concentração (cada vez mais escassa). Uma equipa de investigadores de diversas universidades, incluindo Harvard e Oxford, publicou na mais importante revista de psiquiatria um artigo de revisão sobre esta matéria e os resultados não são animadores. O cérebro online apresenta, inclusivamente, modificações estruturais que comprometem diversos processos cognitivos, como o pensamento profundo, a memória operacional e a capacidade de concentração.

Isto não é bom para os (tele)trabalhadores nem para as empresas que, paulatinamente, passam a ser servidas por quem facilmente se distrai e sistematicamente interrompe as tarefas mais importantes para clicar pela enésima vez na caixa de correio ou nos alertas que piscam no ecrã, clamando a si a mais imediata atenção. É, por isso, fundamental estudar como o teletrabalho pode agravar esta situação ou, melhor ainda, como deverá ser repensado, para que esta distração permanente não se torne no “novo normal”. Há quem prefira designar esta “distração” por multitasking, no entanto, mais do que o palpite, a investigação alerta que o multitasking pode reduzir a produtividade até 40%. Os caçadores-recolectores poderiam dar-nos aqui uma lição.

Por fim, é também importante descortinar eventuais efeitos do teletrabalho na saúde física, em que se destacam as lesões musculosqueléticas ligadas ao trabalho (por exemplo, dores de costas por más condições ergonómicas) e as doenças cardiometabólicas (como a obesidade, diabetes e hipertensão), que, por sua vez, podem ser afetadas pelo sedentarismo e pelo excesso de horas em postura sentada, o que já levou alguns a vaticinar que seating is the new smoking.

Dada a pertinência do assunto, foi dado início na Escola Nacional de Saúde Pública a um projeto que ambiciona, por um lado, compreender melhor o efeito do teletrabalho na saúde física e mental e, por outro, auxiliar com evidência a reflexão (e, já agora, o necessário debate político) sobre o formato deste “novo normal” na forma de trabalhar.

Um documento recentemente publicado pela Organização Internacional do Trabalho divulga o que são já modelos inovadores associados ao teletrabalho, pelo que será do interesse de todos explorar quais os benefícios que esses e outros modelos vindouros podem trazer para as condições e qualidade do trabalho, bem como para a saúde dos teletrabalhadores. Para que esta nova peça no dominó de Gutenberg tombe para o lado de uma modernização que nos serve e nos protege e não uma que, ao invés, nos desumaniza.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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