Hemofilia: a inovação já transformou a vida destes doentes

É uma doença rara e com complicações que podem ser fatais, mas as terapias actualmente disponíveis já permitem um dia-a-dia sem sobressaltos a quem dela sofre. Hoje assinala-se o Dia Mundial da Hemofilia.

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O Dia Mundial da Hemofilia assinala-se a 17 de Abril Getty Images

Vasco Lacerda tem 71 anos de idade e hoje diz-se “afortunado” apesar da doença que o acompanha desde que nasceu. É um dos cerca de mil doentes com hemofilia em Portugal, segundo estimativas da Associação Portuguesa de Hemofilia, o que significa que possui uma doença genética que o leva a ter mais hemorragias e mais difíceis de controlar, as quais acontecem frequentemente no interior das articulações e músculos. Se quando nasceu esta doença era potencialmente fatal – não havia tratamentos disponíveis para estancar as hemorragias e muito menos para as prevenir – hoje, Vasco Lacerda beneficia da evolução registada ao nível da terapêutica, bem como da crescente especialização dos profissionais de saúde. Por isso, quando lhe perguntamos pelos desafios que enfrenta pelo facto de ter esta patologia, responde-nos de imediato - e com um optimismo desarmante - “hoje, nenhuns”. Di-lo assim, ainda que todos os dias tenha de lidar com as consequências da amputação de uma perna a que foi submetido há décadas e que, “provavelmente, poderia ter sido evitada se houvesse tratamento para a hemofilia”. Mas estava em África na altura e aquela foi a solução encontrada para o salvar. Fala do assunto sem dramatismo, preferindo sublinhar como “hoje tudo é diferente”, realçando o enorme apoio da equipa que o acompanha no Hospital de Aveiro – Centro Hospitalar do Baixo Vouga, a começar na imunohemoterapeuta Lúcia Borges, médica que o segue há dez anos e cuja dedicação destaca.

Estima-se que no mundo existam cerca de 350 mil doentes com hemofilia, uma doença rara e hereditária do sangue, que se traduz na incapacidade de este coagular de forma eficaz, porque lhe falta um ou mais factores de coagulação, ou seja, estão em défice alguns ingredientes imprescindíveis para que a coagulação se processe. Existem dois tipos de hemofilia, conforme o factor em falta: na hemofilia A é o factor VIII que escasseia (ou não existe mesmo) e na hemofilia B é o factor IX. A hemofilia A é a mais comum globalmente, afectando 80 a 85% das pessoas com esta doença e é também este o caso de Vasco Lacerda. Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde estima que a incidência de hemofilia A seja de um caso para cinco mil nascimentos do género masculino.

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Vasco Lacerda tem 71 anos e é um dos cerca de mil doentes com hemofilia em Portugal.

Esperança de vida sem mácula

Segundo Cristina Catarino, responsável pelo Centro de Coagulopatias Congénitas do Hospital de Santa Maria - Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), o dia-a-dia das pessoas com hemofilia “é afectado exactamente na medida da gravidade da doença que têm”. Quer isto dizer que quem tem hemofilia grave (ver CAIXA), “sangra espontaneamente, isto é, pode ter estado a dormir, por exemplo, e acordar com um joelho inchado, que é sinónimo de hemorragia nas articulações”, explica a médica. “Se não houver um tratamento, estas pessoas têm uma vida muitíssimo complicada e, até meados do século XX, tinham uma esperança de vida de cerca de 20 anos”, refere, lembrando que “agora têm uma esperança de vida parecida com qualquer outra pessoa se fizerem o tratamento”.

Os tratamentos disponíveis assentam sobretudo em concentrados do factor em falta, sendo administrados por via endovenosa em função da gravidade da doença. “Administramos o tratamento na veia e durante umas horas ou dias a pessoa com hemofilia tem mais factor do que aquilo que costuma ter”, esclarece a especialista, acrescentando que “no caso da hemofilia grave este tratamento tem de ser dado várias vezes por semana, conforme a necessidade”. A boa notícia é que os tratamentos têm evoluído bastante, o que significa maior espaçamento na sua administração, além de que não implicam deslocação ao hospital, a não ser que a pessoa o prefira. Como resultado, os doentes - mesmo os que têm hemofilia grave - podem ter uma vida muito semelhante à de qualquer pessoa e praticar as mais variadas actividades desportivas, bastando que cumpram o plano terapêutico.

Prevenir é sempre melhor

Uma das evoluções verificadas e que muito tem contribuído para a melhoria da qualidade de vida dos doentes é precisamente o consenso existente no que diz respeito à administração do tratamento não só quando há uma hemorragia ou intervenção cirúrgica (terapêutica on-demand), mas sim regularmente (terapêutica profiláctica) como forma de prevenir as hemorragias. “Este tratamento é recomendado aos doentes que têm hemofilia grave e moderada”, especifica Cristina Catarino, assinalando as vantagens, nomeadamente no que diz respeito à saúde das articulações. Nas suas palavras, as hemartroses (hemorragias no interior das articulações) deixam marcas para a vida, além de que são muito dolorosas de cada vez que acontecem, pelo que devem ser evitadas a todo o custo, o que é possível com a terapêutica profiláctica.

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[As pessoas com hemofilia] têm uma esperança de vida parecida com qualquer outra pessoa se fizerem o tratamento. Cristina Catarino, responsável pelo Centro de Coagulopatias Congénitas do Hospital de Santa Maria - Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN)

“Além de prevenir a artropatia, a profilaxia previne também as hemorragias graves, como as intracranianas ou intra-abdominais, que eram causas de morte há alguns anos entre as pessoas com hemofilia”, afirma, salientando que até situações “que nos parecem sem gravidade nenhuma, como sangrar do nariz, se não tiverem tratamento podem evoluir até à morte”, pelo que a prevenção é determinante.

Boas práticas fazem a diferença

Quando a pandemia de Covid-19 nos apanhou a todos de surpresa, a equipa de Cristina Catarino preparava-se para começar a prescrever aos seus doentes com hemofilia – 180 no total, 80 dos quais com hemofilia grave - novos factores, que têm como particularidade o facto de terem uma acção mais prolongada, logo exigirem menos punções. Com a necessidade de reduzir as deslocações dos doentes ao hospital, esta introdução foi acelerada, assim como o envio de medicação ao domicílio, o recurso ao e-mail, o reforço do apoio telefónico e até a adopção de videoconsultas. Apesar disso, “todos os que quiseram continuar a deslocar-se ao hospital puderam fazê-lo”, ressalva, pelo que “mesmo durante a pandemia, mais de metade quis continuar a ir buscar factor ao hospital e falar com a equipa”.

O Serviço de Imunohemoterapia do CHLN é um centro de referência nacional para o tratamento das várias doenças da coagulação do sangue e, no que diz respeito à hemofilia, Cristina Catarino orgulha-se do facto de a totalidade de crianças com hemofilia grave que ali são seguidas fazerem profilaxia. Entre os adultos na mesma situação a percentagem é de cerca de 93%. “Só não faz quem não quer mesmo”, garante, reforçando a importância de prevenir as consequências da patologia e lamentando o facto de alguns doentes mais velhos recusarem a autoinjecção.

Actualmente, o treino para a autonomia começa cedo e não é raro que aos 12 anos de idade alguns já autoadministrem a terapêutica, evitando a deslocação ao hospital. “A ideia é que até aos 18 anos fiquem autónomos”, explica, dando conta que também os pais são ensinados a administrar a terapêutica aos filhos logo que a doença é diagnosticada, o que em regra acontece ao longo do primeiro ano de vida.

Garantir soluções inovadoras

Uma das empresas farmacêuticas que mais se destaca na procura de soluções inovadoras para o tratamento da hemofilia A é a Bayer, que tem vindo a ser líder na Investigação & Desenvolvimento (I&D) de novas terapêuticas nesta área desde os anos 1960. Entre os medicamentos mais recentes destacam-se os chamados factores recombinantes, que assentam na tecnologia de DNA recombinante utilizando células geneticamente modificadas. De acordo com Sofia André, Market Access & Public Affairs Head da Bayer, “as terapêuticas mais recentes têm tido sobretudo um impacto significativo na qualidade de vida dos doentes, na medida em que envolvem menor número de administrações, facilitando a gestão da doença”.

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As terapêuticas mais recentes têm tido sobretudo um impacto significativo na qualidade de vida dos doentes, na medida em que envolvem menor número de administrações, facilitando a gestão da doença. Sofia André, Market Access & Public Affairs Head da Bayer Portugal

Uma das áreas em que a Bayer tem vindo a investir para melhor ajudar os doentes com hemofilia é ao nível da terapia génica. Isto porque a hemofilia é uma doença hereditária, ou seja, é transmitida através dos genes de pais para filhos. Todavia, cerca de 30% dos casos ocorrem sem história familiar, devido a uma alteração genética que pode verificar-se no momento da concepção. Como tal, Sofia André destaca o objectivo da Bayer: “A lógica da terapia génica é ir à raiz e actuar. A premissa é utilizar material genético como se de um medicamento se tratasse para tentar corrigir ou substituir este gene disfuncional na pessoa com hemofilia.” Para já, a farmacêutica tem um ensaio clínico a decorrer, mas ainda numa fase prematura, devendo incluir o primeiro doente em Setembro deste ano, sendo que a investigação integrará pacientes de 15 países.

A Bayer não se destaca apenas na I&D de terapêuticas inovadoras para o tratamento da hemofilia, também na produção de evidência científica sobre a doença. “Ao contrário de outros países, Portugal ainda não tem um registo nacional de hemofilia e isto faz com que haja ainda escassez de dados epidemiológicos nacionais e, os que existem, revestem-se de alguma incerteza”, constata Sofia André, razão por que a empresa tem tentado “contribuir para a caracterização da realidade nacional”. Para tal, tem neste momento dois estudos a decorrer, com vista a fazer um retrato da população com hemofilia A, caracterizar a doença no nosso país, conhecer mais sobre o diagnóstico, o tratamento e qualidade de vida do doente e ainda captar o impacto da situação pandémica na gestão da doença. Tudo para que a realidade seja aprofundadamente conhecida e as necessidades dos doentes portugueses possam ser mais e melhor atendidas.


MA-PFM-HEM-PT-0022-1 04/2021