União Europeia, quantas divisões? Quando o softpower não é poder nenhum

Sem mais integração na política externa e sem mais hard power, uma União geopolítica não passa de um slogan vazio.

1. “Nós, europeus, temos de compreender que o soft power por si só não é realmente poder nenhum. Sem capacidades de hard power para apoiar a sua diplomacia faltará à Europa credibilidade e influência. Arriscar-se-á a ser um espectador global, em vez do poderoso actor global que pode ser — e deve ser”. A frase do antigo secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, foi proferida a 6 de Maio de 2013, numa reunião conjunta da Comissão dos Assuntos Externos e da Subcomissão de Segurança e Defesa do Parlamento Europeu com os presidentes das comissões de defesa e dos negócios estrangeiras dos parlamentos nacionais. Tendo em conta o annus horribilis que a União Europeia está a ter na sua política externa, poderia muito bem ter sido dita após as desastrosas visitas da União Europeia à Rússia e à Turquia. Expuseram uma União débil, incapaz de projectar a sua influência e poder sobre os seus vizinhos no Leste Europeu e no Mediterrâneo Oriental. Pior ainda, mostraram que a Rússia e a Turquia se sentem fortes e confiantes para ignorar as pressões políticas da União Europeia e menosprezá-la publicamente.

2. “O Papa, quantas divisões? A frase é bem conhecida pelo seu sarcasmo e sobretudo pelo desprezo pelos que não têm um verdadeiro militar, ou seja, têm falta de hard power. Quando o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, recebeu em Moscovo, em inícios de Fevereiro de 2021, o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, só faltou perguntar-lhe: “Ah, a União Europeia, quantas divisões?” No seu contexto original a frase leva-nos à Europa dos anos 1930, o que é também bem instrutivo. Foi proferida durante uma visita de Pierre Laval, na época ministro dos Negócios Estrangeiros da França, à União Soviética de Estaline em 1935. Laval e Estaline negociavam um tratado de assistência mútua em caso de agressão. Estaline estava preocupado com o número de divisões que o exército francês poderia mobilizar na frente Ocidental em caso de guerra. No meio dessas negociações, Pierre Laval perguntou-lhe se não poderia melhorar a posição da religião católica na Rússia. Aí surgiu a pergunta cínica de Estaline: “O Papa, quantas divisões? (Ver o livro de Frédéric Le Moal, Le Moal, Les divisions du pape: le Vatican face aux dictatures: 1917-1989, Perrin, 2016).

3. A recente visita à Turquia de Ursula von der Leyen (presidente da Comissão) e Charles Michel (presidente do Conselho Europeu), em inícios de Abril de 2021, acabou num fiasco e humilhação similar à anterior visita de Josep Borrell à Rússia, embora tendo outros contornos. No caso da Rússia, Serguei Lavrov empenhou-se em mostrar a irrelevância política da União Europeia. Não só ignorou as críticas sobre a detenção do político russo da oposição, Alexei Navalny, como o seu Governo, ao mesmo tempo que era feita a conferência de imprensa conjunta com Josep Borrell, expulsava vários diplomatas europeus. A imagem que Josep Borrell deixou foi de uma União Europeia débil e inconsequente na sua política externa, que ficou a falar sozinha de direitos humanos na Rússia, sendo menosprezada. No caso da visita à Turquia em Abril de 2021, foi a vez da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ser desconsiderada publicamente, ficando numa situação altamente embaraçosa. Nas imagens que foram tornadas públicas viu-se Recep Tayyip Erdoğan, Presidente da Turquia, a receber no palácio presidencial Charles Michel, presidente do Conselho Europeu. Enquanto Recep Tayyip Erdoğan e Charles Michel ocupavam as suas cadeiras com as respectivas bandeiras, a líder da Comissão Europeia teve de permanecer de pé sem saber onde se sentar, sendo depois colocada num sofá. É improvável tratar-se de uma inocente gaffe protocolar. Tudo isto ocorreu num contexto político onde a Turquia abandonou a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul, 2011) e se sabia que a Presidente da Comissão Europeia levava o assunto na sua agenda política. Tal como Josep Borrell foi ignorado nas suas críticas sob os direitos humanos na Rússia (e confrontado com a expulsão de diplomatas europeus), também Ursula von der Leyen foi ignorada nas suas críticas à saída da Turquia da Convenção e relegada para uma posição menor — uma figura decorativa feminina num sofá / divã otomano.  

4. O sofagate, tal como tem sido designado na imprensa, tem por isso uma boa dose de ironia histórico-política. A Turquia / Império Otomano estão na origem do termo divã nas línguas ocidentais o qual designa uma peça de mobiliário similar a um sofá. O uso surgiu na Europa de finais do século XVIII com o orientalismo estético e literário. O divã era um longo assento formado por um colchão colocado no chão ou sobre uma estrutura elevada, com almofadas para apoio. Nos Impérios Otomano e Persa, encontrava-se usualmente longo das paredes das câmaras do conselho. Para além de estar na origem da palavra divã no Ocidente, a Turquia tem ainda experiência de conflitos diplomáticos com sofás / divãs. Em 2010, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, Danny Ayalon, chamou o embaixador turco Ahmet Oguz Celikkol para lhe apresentar um protesto diplomático. Em causa estava um programa de televisão da Turquia que retratava os militares israelitas como sequestradores de crianças e assassinos de velhos. Intencionalmente, o embaixador turco foi sentado num sofá mais baixo do que o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel (e sem a bandeira turca à frente). Quando as imagens foram tornadas públicas, a Turquia respondeu em fúria ameaçando represálias e de retirar o seu embaixador de Israel. Podemos imaginar como reagiriam a Turquia e Recep Tayyip Erdoğan se este, numa visita à União Europeia, fosse tratado de forma similar a este caso ou como foi Ursula von der Leyen. 

5. Há nestes episódios uma lição incontornável para a União Europeia. Só com soft power a União não é um actor credível internacionalmente. Isto ocorre de uma maneira ostensiva quando tem de lidar com grandes potências mundiais, mas também já com médias potências regionais. Nesta altura, as questões geopolíticas maiores estão suas fronteiras Leste (Rússia) e Sudeste (Turquia), e, em ambos os casos, a União Europeia foi ignorada, desconsiderada e até humilhada. Em teoria, a União é uma grande potência, mas, na prática, acaba por nem se conseguir impor às médias potências regionais. Não é apenas o problema crónico de falta de integração da política externa europeia — e das divisões entre os Estados-Membros — que explica os falhanços diplomáticos ocorridos. Nem é também só uma questão de rivalidades entre instituições europeias como foi observável entre a presidente da Comissão e o presidente do Conselho Europeu. É um problema de falta de instrumentos de poder num mundo que não segue as regras que os europeus vêem como boas em matéria de democracia, de direitos humanos, de respeito pelas minorias e em muitas outras áreas. E não se resolve apenas com soft power e visão estratégica. Sem mais integração na política externa e sem mais hard power, uma União geopolítica não passa de um slogan vazio.

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