O que fez a pandemia ao nosso consumo de vinho?

Ao longo de 2020, ganhou terreno a ideia de que o vinho se tornou parte da rotina dos portugueses. Um copo ao almoço, outro ao final do dia, uma garrafa a acompanhar um jantar feito com tempo e fins-de-semana de confinamento fizeram crer que o consumo teria disparado para níveis históricos. Os números, porém, contam outra história. Bebeu-se muito, sim, mas com turismo e restauração a meio-gás, não se bebeu mais do que em anos anteriores. Um retrato do consumo de vinho em tempo de pandemia.

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Anna Costa

Questionámos o presidente da ANDOVI, um sommelier e o fundador de uma das maiores garrafeiras nacionais e, apesar de as experiências serem ligeiramente divergentes em termos analíticos, numa coisa há acordo: os hábitos de consumo de vinho em Portugal, em tempos de pandemia, alteraram-se radicalmente. 

Bebeu-se mais, as gamas mais baixas ganharam terreno em relação a títulos premium e grandes reservas e os tintos foram ultrapassados por vinhos mais frescos, com os brancos e rosés no topo da preferência do consumidor-modelo.

Mas isso significa que as vendas de vinho tenham aumentado de facto? Não necessariamente. 

Francisco Mateus, presidente da Associação Nacional de Denominações de Origens Vitivinícolas (ANDOVI) refere que, não havendo ainda dados oficiais referentes ao último trimestre de 2020, os números até Setembro do ano passado não foram animadores, tendo registado quebras de cerca de 11% no mercado nacional. “Nos primeiros três meses não houve grandes mudanças no consumo per capita, mas a partir de Março, com o encerramento dos restaurantes e o turismo a levar um abanão, o caso mudou de figura e a procura baixou para quase metade em relação ao ano anterior”. Isto, traduzido em euros, significa que os 10,5 milhões de litros vendidos em 2020 estiveram longe de igualar os 27 milhões do ano anterior. “Talvez no Natal tenha havido um ligeiro crescimento destes valores”, refere, e isto, conclui, tem que ver com uma maior disponibilidade para apostar em vinhos de regiões com preços mais elevados, como Alentejo e Douro. Mas, para já, ainda não há dados comparativos.

A predisposição para experimentar outras regiões

João Soares, fundador da Garrafeira Soares e membro da administração da Herdade da Malhadinha Nova, confirma a informação, acrescentando que com esta mudança de hábitos e o acréscimo do consumo doméstico, quem beneficiou realmente com este novo paradigma de consumo foram os supermercados e hipermercados, que retiveram uma fatia importante das vendas que, noutros tempos, estavam mais concentradas nas garrafeiras e lojas de vinhos especializadas.

Mas nem tudo são más notícias. Se é certo que se vendeu menos vinho de qualidade superior, a menor disponibilidade financeira da população – apontem-se os dedos aos lay-offs generalizados – abriu espaço outro tipo de procura: a dos vinhos de mesa, naturalmente com preços muito mais baixos e que por norma não eram, até então, tão aliciantes para os consumidores, que passaram a privilegiar o preço em detrimento da qualidade. E esta tendência, confirma, João Chambel, sommelier e proprietário de um wine bar em Lisboa, “fez que as pessoas se predispusessem a experimentar coisas novas e a quebrar as barreiras das regiões a que estavam acostumadas”. Com Douro e Alentejo na frente da corrida em tempos ditos normais, nesta conjuntura de pandemia, conta, os verdes ganharam maior projecção e passou-se a dar mais atenção a regiões mais esquecidas, como a Bairrada, o Dão e a Beira Interior, que, diz “produzem vinhos óptimos”.

“Eu próprio comprei vinhos de gama mais baixa, mas também aconteceu ir buscar aquelas garrafas que estavam guardadas para uma ocasião especial e abri-las em dias absolutamente normais, precisamente porque, estando em casa, com rotinas alteradas e mais tempo livre, todos os dias passaram a ser dias especiais.” No que diz respeito às vendas directas, conta Chambel, foi “uma desgraça”. A somar à ausência de actividade na restauração, às restrições de horários na venda de bebidas alcoólicas, também as lojas de vinho e garrafeiras sofreram com a falta de clientela. Valeram-lhe as vendas online, que embora tenham colocado a quantidade à frente da qualidade, continuaram a funcionar em pleno. “Ou seja, não deixámos de funcionar, simplesmente respondemos à vontade do consumidor, que em vez de investir 10 euros numa garrafa (que seria mais ou menos a média pré-pandémica), passou a investir 40 euros num total de seis garrafas.” Francisco Mateus aproveita, por isso, para destacar a “enorme resiliência de todos os produtores e comerciantes de vinho que, em tempos extremamente desafiantes, souberam ajustar os modelos de negócio para se manterem à tona”. 

Exportações a crescer

No que respeita ao consumo de vinho português, o mercado internacional respondeu “muito bem”, diz Francisco Mateus. Estando Portugal no grupo dos principais produtores mundiais de vinho, a par da França, da Itália, da Austrália, Nova Zelândia, Argentina e África do Sul, as exportações totais de vinho nacional foram das que mais cresceram em 2020, de 819 milhões de euros para uns confortáveis 850 milhões de euros, segundo números da consultora internacional ITC Wine divulgados pela ANDOVI.

No caso da Garrafeira Soares, cujos mercados se centram sobretudo no Algarve nas exportações, 2020 foi um ano bom com as vendas para o estrangeiro a subirem para o dobro em relação a 2019. Também no caso, o mercado online terá contribuído para o crescimento, admite João Soares, que aponta a Suíça como um dos compradores mais consistentes e líder absoluto do volume de exportações da Garrafeira Soares.

Francisco Mateus confirma a tendência, mas é cauteloso ao revelar uma quebra significativa das vendas para Angola que, diz, “felizmente foram compensadas com encomendas de outros países, parceiros sólidos, como a China e a Rússia, cujo compromisso de negócio cresceu ligeiramente”. Além disso, diz Francisco Mateus, apesar de não ter havido grandes negociações no preço do vinho por litro, vários países estrangeiros acordaram para a diversidade do que se produz em Portugal e passaram a incluir nas suas encomendas títulos que não eram tão apelativos pelos seus preços baixos mas que se revelaram grandes players para o futuro da exportação nacional.

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