Somos aquilo que comemos?

O que comemos diz muito sobre nós, sobre o que somos e defendemos, pelo que uma escolha consciente dos produtos agroalimentares que consumimos é tanto uma obrigação (ética e de cidadania) como um direito.

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Miguel Manso

Em 2020, a campanha Our Food Our Future realizou um estudo para perceber o que pensam os portugueses da alimentação e da indústria alimentar. Chegou-se à conclusão de que nem um terço dos inquiridos se preocupam, na prática, em consumir produtos alimentares de um ponto de vista ético (questões como uso de plástico nas embalagens, comércio justo, direitos humanos e dos animais, etc.), apesar de mais de metade deles se identificar com a importância desta dimensão.

Isto leva-nos à consideração que há uma discrepância entre o que os consumidores portugueses pensam e defendem no plano formal, e o que, de facto, praticam. Porém, o consumidor, tendo a sua quota-parte complementar na responsabilidade ética e ambiental no que consome, é complementar no problema total, visto que a grande responsabilidade está na componente estrutural (política e mercado).

O exemplo das cadeias de valor é dos mais evidentes. É da responsabilidade das empresas assegurarem que os seus produtos são o mais sustentáveis e respeitadores dos direitos humanos e dos animais possível, ao longo da sua cadeia de produção e distribuição. Isto deve ser um compromisso ético para com o consumidor, mas também uma exigência legal. Este último ponto remete para a necessidade de uma directiva europeia e um corpo legal vinculativo a nível internacional, onde as regras ambientais e de respeito pelos direitos humanos e dos animais têm primazia.

Para o consumidor, é difícil obter informação sobre estas cadeias produtivas e dúvidas sobre a fiabilidade dessa informação. Aqui são cruciais tanto o papel dos média e das organizações da sociedade civil para a criação de instrumentos que facilitem o consumo ético e sustentável, como iniciativas políticas abrangentes como a Estratégia do Prado ao Prato, que reiteram a importância de, entre outras coisas, uma economia circular.

Um dos exemplos problemáticos nestas cadeias de valor é o trabalho forçado por parte de imigrantes, muitas vezes em situação irregular, o que favorece a violação dos seus direitos. Porém, mesmo entre os que têm a sua situação legalizada, muitos estão presos a contratos de trabalho extremamente precários, sujeitos à sazonalidade e a condições de vida degradantes, tanto na habitação como no local de trabalho. A precariedade foi exacerbada pela pandemia, deixando muitos trabalhadores em situação de fome e insegurança.

Estes imigrantes trabalham na agricultura intensiva e de monocultura que se tem espalhado pelo Alentejo e Algarve nos últimos anos. Esta forma de produzir alimentos é extremamente prejudicial para o meio ambiente, tanto para a biodiversidade como para o ciclo da água e a degradação dos solos. Ou seja, à violação da dignidade humana junta-se uma violação da sustentabilidade ambiental, tudo implicado num produto alimentar.

Todas estas questões não podem ser abordadas de forma desconectada. O que comemos diz muito sobre nós, sobre o que somos e defendemos, pelo que uma escolha consciente dos produtos agroalimentares que consumimos é tanto uma obrigação (ética e de cidadania) como um direito. Para que haja consequências e responsabilização nestas situações criminosas para com o ambiente e a Humanidade, e para termos acesso rápido a informação fidedigna nas nossas escolhas, é preciso pressionar os representantes políticos e mobilizarmo-nos, cada vez mais, em movimentos sociais e organizações da sociedade civil.

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