Para além da emergência

O recurso à política fiscal para financiar medidas de emergência social é uma solução aceitável, se não conduzir à perda de rendimento de um setor significativo da população e se for orientada por critérios de progressividade das taxas de imposto.

A situação de carência de setores significativos da população trabalhadora, na sequência da crise pandémica, recuperou velhas ideias e soluções contestadas. O governo de António Costa, colado a uma trajetória de contenção do défice orçamental em linha com as exigências dos tratados europeus transitoriamente suspensos, deixou muita gente sem apoios e sem perspetivas de futuro. Partindo da clivagem entre quem presta teletrabalho e quem desenvolve trabalho presencial ou perdeu o emprego, alguns setores defendem que os primeiros, considerados privilegiados, deveriam ser taxados para acudir às necessidades dos segundos.

O recurso à política fiscal para financiar medidas de emergência social é uma solução aceitável, se não conduzir à perda de rendimento de um setor significativo da população (para evitar os impactos recessivos) e se for orientada por critérios de progressividade das taxas de imposto. Isto significa tributar as grandes fortunas e ajustar o sistema fiscal para que os muito ricos paguem proporcionalmente mais. Mas, no caso em análise, tratar-se-ia de redistribuir rendimentos entre grupos de assalariados, o que, na melhor das hipóteses, deixaria sensivelmente constante o poder de compra da população trabalhadora, ele próprio deprimido pelos efeitos da crise.

Esta abordagem levanta dois problemas. Primeiro, a importância de uma outra solução, o aumento do défice orçamental, que neste momento não acarreta a imposição de sanções pelas autoridades europeias e conta com taxas de juro baixas, com a vantagem de que poderia representar criação de poder de compra adicional, novo emprego, senão mesmo nova capacidade produtiva. Por exemplo, a criação de uma rede pública de lares, a regeneração ambiental ou a garantia de emprego nos serviços públicos são medidas com eficácia dinâmica, ajudam a alcançar o pleno emprego, suscitam investimento em outras atividades económicas e são uma herança para o futuro.

Acompanhando a reação neoliberal, este tipo de solução provoca objeções escutadas no período da troika: mais endividamento significaria “viver acima das nossas possibilidades”, “lançar um imposto futuro” que os agentes económicos antecipam contraindo a despesa atual (“equivalência Ricardiana”) ou penalizar o investimento privado, cujos custos de financiamento se tornariam mais elevados nos mercados financeiros (efeito crowding-out). Estes argumentos partem da analogia entre o comportamento do Estado e o comportamento de uma família ou de um indivíduo no mercado da dívida, que está longe de traduzir a realidade. Os indivíduos ou as famílias são utilizadores dos meios colocados à sua disposição pelas instituições financeiras, enquanto os Estados com soberania monetária (o que não é o caso em Portugal), dentro de certos limites e tendo em conta as diferenças entre eles, são criadores desses mesmos meios financeiros com a sua política.

O segundo problema relaciona-se com a forma como se aprecia a criação de bem-estar na sociedade. Sem negar a existência de classes sociais, estas não são determinantes na forma como os proponentes do imposto sobre os prestadores de teletrabalho apreciam os seus efeitos. O bem-estar global é o somatório do bem-estar de cada um dos indivíduos, independentemente da classe social a que pertencem. Por isso, não se importam de colocar trabalhadores contra trabalhadores, uns a subsidiar os outros, partindo da heterogeneidade entre diferentes níveis de escolaridade, de sexo ou de setor de atividade. Até que ponto este método é legítimo, tendo em conta as condições de vida da maioria da população que mostram, em todo o mundo, um aprofundamento das desigualdades em proveito de uma pequena minoria?

O que está em causa é a dicotomia entre esquerda e direita. Quando se adota o individualismo metodológico para apreciar o desempenho dos indivíduos, no fundo, aceitam-se as virtualidades da concorrência e da ordem que resulta da agregação daqueles desempenhos. É uma abordagem compatível com a manutenção do tipo de sociedade em que vivemos, mais ou menos temperada pela intervenção do Estado para corrigir os “excessos” que geram pobreza, desigualdades ou “falhas de mercado”. Por sua vez, quando se parte do princípio de que existe uma contradição irredutível entre proprietários dos grandes meios de produção e trabalhadores e que a financeirização da economia sacrifica a economia real e aprofunda as desigualdades, daí resulta a necessidade de transformar estruturalmente a sociedade. E assim se compreende o que verdadeiramente está em causa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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