Instituto da Habitação vai ganhar poderes para fiscalizar arrendamentos

Marina Gonçalves, secretária de Estado da Habitação, revela que o Governo está a estudar a hipótese de o IHRU poder denunciar à Autoridade Tributária a inexistência de vínculos formais no arrendamento. E adianta que já está à procura de alternativas de financiamento para executar a Bolsa Pública de Arrendamento e o Primeiro Direito.

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NUNO FERREIRA SANTOS

O Governo está a estudar a forma de dar mais poderes ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para fiscalizar os contratos de arrendamento – ou a falta deles. Em entrevista ao PÚBLICO e Rádio Renascença (Hora da Verdade), a secretária de Estado da Habitação, Marina Gonçalves, assumiu que o combate à informalidade é uma preocupação do Governo. Diz que, mais do que aumentar a receita fiscal, quer proteger os arrendatários. O financiamento sem precedentes que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) vai trazer para as políticas de habitação não vai chegar para executar programas como o Primeiro Direito ou a Bolsa Pública para Arrendamento Acessível, mas será uma alavanca forte, que até já permitiu ultrapassar divergências ideológicas com algumas câmaras municipais. Marina Gonçalves diz que a fraca adesão aos programas não faz deles um fracasso e garante que o Governo não vai desistir de instrumentos como o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE), que não construiu nenhum fogo ainda, ou o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), que chegou a 471 famílias. 

O ministro da Habitação referiu-se a uma “revolução nas políticas de habitação” e a “um financiamento sem precedentes”, sendo os 1600 milhões de euros a fundo perdido até 2026 que vão buscar no PRR o mais importante instrumento para essa revolução. Que preocupações terá o Governo na forma como essas verbas chegam ao território? 
Temos de ter necessariamente a preocupação da coesão territorial. Vamos regulamentar o Primeiro Direito para o período do PRR, em que quem chegar primeiro tem acesso a 100% [de financiamento], mas sem prescindir do programa como ele está construído. Temos de executar e entregar as 26 mil casas às famílias até Julho de 2026 e temos de compatibilizá-lo com uma preocupação de coesão territorial. Vamos garantir este equilíbrio de soluções e de prioridades.

A execução desta componente do PRR está dependente das estratégias locais de Habitação (ELH), feitas pelas câmaras. Ainda há muitas por entregar, mas, entre as que já estão entregues, os pedidos de financiamento já quase esgotam a verba disponível. Isto não preocupa o Governo?
Nós temos 34 acordos de colaboração assinados que dão respostas para um pouco mais de 18 mil famílias. Ainda não esgotámos o que é o investimento do PRR, mas não temos dúvidas de que isso vai acontecer. Isso preocupa-nos, mas também nos dá uma certeza. O Primeiro Direito não é um programa que esteja limitado ao PRR, o PRR é um instrumento para financiar o Primeiro Direito. E o levantamento inicial das 26 mil famílias não é um limite para o investimento. Necessariamente, temos de continuar o programa e o financiamento terá de ser encontrado para salvaguardar o cumprimento de um programa que criámos ainda antes do PRR.

Imaginemos, por exemplo, que a Câmara de Odemira não avança com a sua ELH e não procura financiamento para resolver o caso dos muitos trabalhadores precários que vivem em contentores. Isso significa que vai ficar de fora? Ou Governo pode intervir?
O programa assenta, para além de um conjunto de regras, num conjunto de princípios. Definimos que devem ser identificadas as carências habitacionais em várias vertentes (sobrelotação, precariedade da casa, inexistência de habitação) e com estes princípios estamos a pressupor que o IHRU avalia se essas mesmas vertentes estão identificadas. Neste momento há 122 municípios que estão a trabalhar com o IHRU nesta fase preparatória. Além disso, a ELH não é imutável. A partir do momento em que é entregue, e até à sua execução ou finalização, ela pode ser alterada, actualizada. É, de facto, um trabalho conjunto. 

Há uma série de casos à volta de Lisboa, onde existem bairros precários em câmaras tradicionalmente comunistas (Seixal, Almada, Loures). Os autarcas do PCP dizem que a habitação é competência do poder central. O que é que o Governo está a fazer em relação a bairros como Jamaica, o Segundo Torrão ou a Quinta das Lagoas?
São situações que temos identificadas. Tomando como exemplo o Bairro da Jamaica, até havia uma vontade do município resolver aquela situação, mesmo antes do financiamento a 100%. Seria através de outro instrumento, o Prohabita, mas fizemos um acordo muito recente para transitar para o Primeiro Direito, para dar resposta a uma preocupação dos autarcas do PCP, que é que a responsabilidade do financiamento seja do Estado central. Nós temos essa capacidade com o PRR.

Essas diferenças de pensamento, que reconhece existir, dificultam a agilização do processo?
Dificultam, mas na verdade temos estado a trabalhar. Não há nenhuma falta de articulação. Ter um instrumento como o PRR, que promove o financiamento a 100%, ajuda a encontrar esse tal ponto de equilíbrio. Em alguns municípios não é só um problema de pensamento – não há mesmo capacidade de financiar algum tipo de soluções habitacionais. E efectivamente o Estado central também tem uma responsabilidade nestas políticas. É um trabalho conjunto.

Na versão de PRR que apresentou, o Governo falava na possibilidade de ir buscar 1400 milhões de euros em empréstimos também para habitação. Confirma esse valor, na versão final do plano? 
O PRR ainda não está aprovado, mas mantemos uma componente de empréstimo em duas vias. Há 774 milhões de euros para o arrendamento acessível e há depois 375 milhões de euros para o alojamento estudantil, em que se pretende criar 15 mil camas especificamente em residências.

Em que tipo de projectos vai ser aplicada essa verba do arrendamento acessível? É para reabilitar património do IHRU (o Governo assumiu o compromisso de reabilitar integralmente todo o parque até ao final da legislatura), ou é para avançar a Bolsa Pública de Imóveis? 
É para financiar especificamente a Bolsa de Imóveis para arrendamento acessível, ou seja, para a recuperação e construção do património que já está hoje na esfera do Estado. E o que tem aptidão habitacional vai ser utilizado para políticas públicas. A par com este instrumento, e com outras fontes de financiamento fora do PRR, vai ser reabilitado o património já existente na esfera do IHRU. São, por isso, dois programas diferentes. E, tal como no Primeiro Direito, os 774 milhões são um primeiro passo numa estratégia que necessariamente tem de ir para além de Julho de 2026.

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A bolsa de arrendamento acessível e o alojamento estudantil avançam, mesmo que não avance a componente de empréstimos do PRR?
Não criámos a Bolsa para o período do PRR, mas sim porque é nosso objectivo reabilitar o património do Estado com aptidão habitacional para o colocar no mercado. O objectivo do Governo é chegar aos 5% de parque público na legislatura. E se o PRR não tiver financiamento para o arrendamento acessível, outras fontes de financiamento terão de ser encontradas. Não estamos à espera que acabe o PRR para pensar em alternativas, é um trabalho que já vamos fazendo.

E em que passo está essa inventariação de património?
O inventário está a dar os passos iniciais. Colocámos no Portal da Habitação a plataforma que permite às entidades públicas inscrever esse património que está devoluto e que tem aptidão habitacional. E os primeiros passos de assinaturas de protocolos com o Instituto de Registos e Notariado, com a Autoridade Tributária, com a Direcção-Geral do Tesouro e Finanças para acesso às plataformas de dados estão praticamente finalizados. Isto é um processo em contínuo.

Acredita que vai ser possível colocar fogos no mercado ainda nesta legislatura?  
Tenho de acreditar que sim. No PRR, calendarizámos, até Julho de 2026, 6800 fogos. Todos estes processos são morosos, sabemos que há um passo a mais, um prazo que escorrega, uma impugnação. Até chegar à empreitada há muitos meses de trabalho e muitos passos a ser dados. A nossa expectativa é, até final da legislatura, termos uma parte importante destes fogos no mercado. Não serão todos. Certamente vou chegar ao final da legislatura a dizer que gostaria de ter mais, mas o importante é darmos os primeiros passos.

Pouco mais de 700 famílias tiveram acesso às linhas de financiamento criadas pelo IHRU para ajudar ao pagamento das rendas habitacionais por causa da pandemia. Tendo em conta tão fraca execução, o que é preciso mudar? 
Houve uma fraca adesão ao programa e tem que ver com dois factores. Um deles é a gestão dos rendimentos das famílias e as pessoas preferirem pagar a sua renda e não ter ónus. A segunda questão, que nos preocupa, é a informalidade do mercado de arrendamento. Essa informalidade implica que as pessoas não consigam aceder aos instrumentos. Já não são pedidos muitos elementos para acesso a candidatura, nem é pedido um contrato de arrendamento, basta um recibo de renda. E isso não acontece. Acho que isto explica porque muita gente não acedeu ao programa. E mesmo entre os que acederam, 24,5% dos casos de indeferimento têm que ver com a inexistência de uma prova de contrato.

O que é que o Governo está a fazer para combater essa informalidade? 
Sempre houve uma incerteza sobre quem regula ou fiscaliza estas matérias. A Autoridade Tributária (AT) consegue perceber quais são os contratos de arrendamento que estão inscritos nas Finanças – é a forma mais fácil de identificar os que estão. Mas nós criámos uma competência no IHRU de fiscalização das regras do arrendamento. Já hoje as pessoas têm legitimidade para, junto do IHRU, dizer que não estão a ser cumpridas as regras de arrendamento. Falta é definir qual é o procedimento, quando acontecem estes casos. Estamos a trabalhar para densificar esta competência do IHRU, articulando com competências de outras entidades que nos permitam aferir estas situações de informalidade.

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Está a dizer que há um vazio, se não legal, pelo menos de fiscalização?
De fiscalização, claramente. A única forma de fiscalização que existe é feita pela AT, em função do que vai conhecendo, e pode identificar o que é um contrato formal ou não. Estamos a tentar reforçar esta competência. É uma medida que pode ser mal interpretada, porque pode parecer que estamos atrás de reforçar a receita fiscal, e não tem de todo que ver com isso. Para além da AT, o IHRU passa a ter um papel importante. Temos de densificar a forma como vai ser salvaguardado. Pode até ser numa lógica de comunicação a quem já hoje pode identificar isto, que é a AT. É esse trabalho que estamos a fazer.

Num ano de crise económica e pandemia, as rendas desceram, mas não muito (cerca de 5%). Como se controla este mercado?
Temos a convicção de que a forma de controlar o mercado é com o Estado presente. A nossa grande aposta, que não fazemos num mês nem em dois, é reforçar o parque habitacional público. Há também um conjunto de respostas mais imediatas, instrumentos que fomos criando para contrariar esta tendência, como os programas de arrendamento acessível, o central e os municipais, ou o Porta 65. Mas estes modelos de dar benefícios ao senhorio em contrapartida de um benefício que é gerado no arrendatário não são a solução para o problema.

O que acha que é mais relevante no posicionamento dos proprietários privados que resistem em aderir ao programa: a fé no regresso do turismo, que os leva a evitar colocar os imóveis no arrendamento de longa duração, ou é a pouca fé na lei das rendas e no mercado de arrendamento?
Não querendo ser mal interpretada, enquanto o Estado promove o mercado de arrendamento para salvaguardar respostas às famílias, condizentes com os seus rendimentos, grande parte do mercado privado assenta numa visão mais financeira do que é o arrendamento. Não estou a dizer que isso é errado, não são os privados quem tem de fazer política pública de habitação. Mas, naturalmente, se vamos priorizar onde investimos, a minha prioridade é robustecer a política pública de habitação através do parque habitacional público.

Podemos dizer que desistiram do programa de arrendamento acessível, como desistiram do FNRE? Os programas não são propriamente suspensos, mas também não merecem nenhuma aposta por parte do Governo. 
Não desistimos dos programas! O Programa de Arrendamento Acessível (PAA) é importante. Tínhamos expectativas mais elevadas, mas vamos vendo evolução. De há um mês para cá temos mais 70 famílias adicionais, ou seja, já temos 414 contratos assinados. Temos 20 mil jovens que acederam ao Porta 65 em 2020. Seria errado dizer que desistimos de um programa ou que consideramos um fracasso um programa que dá resposta a estas pessoas.

Mas estaria disponível para alterar o PAA?
Em abstracto estou sempre disponível para analisar qualquer problema e perceber como o posso melhorar. Só não sei é como é que, num programa que está assente na isenção total dos impostos prediais, o torno mais atractivo do que isto. Mas não podemos considerar que o programa é um fracasso, porque não chegámos aos números que queríamos. 

Não é sensível ao argumento de que um PAA só seria eficaz se tivesse como referência o rendimento das famílias e não o valor de mercado do imóvel? 
Sou sensível a esse argumento, se estivermos a olhar para ele na lógica do arrendatário. Se for ao contrário, já não percebo tanto – porque, se estou a fazer uma política de arrendamento acessível olhando para um problema que tenho na sociedade, e não para quem consegue encontrar respostas no mercado, não estarei a promover verdadeiramente uma política pública de habitação.

Estaria a subsidiar os proprietários? É esse o receio?
O meu receio não é a subsidiação – é estar a fazer uma política pública, em que não estou chegar às pessoas a que quero chegar e que é às pessoas que não conseguem encontrar respostas por si no mercado. Actualmente 56% dos contratos celebrados no PAA têm uma redução de renda que vai para além dos 20% que refere a lei, têm uma redução que vai até aos 40%. Há um esforço também por parte dos senhorios em tentar enquadrar a renda efectivamente no que é a capacidade dos arrendatários. 

O Programa Bairros Saudáveis mostrou que não é só nas grandes áreas metropolitanas que há necessidades de habitação (30% das candidaturas foram de territórios de baixa densidade onde vive 20% da população). Como interpreta estes dados?
O Bairros Saudáveis tem uma componente que vai muito para além da habitação, com muitas outras dinâmicas. E traz mais uma evidência da necessidade que há de encontrar respostas que garantam coesão territorial, uma capacidade de chegar ao país todo e a importância de apostar em modelos em que a população tenha um papel activo. São um bom exemplo de como nos projectos em que a comunidade se sente envolvida cria a sua resposta.

Porque depois a preservam melhor?
A população é parte da sua solução, porque estão a construir o que acham que é necessário. Esta coordenação é muito importante. A política de habitação não deve promover determinada solução que não tenha em conta o que são as preocupações das famílias.

Que papel pode ter o sector social e cooperativo na elaboração da nova política de habitação?
O Primeiro Direito já permite o investimento por parte do terceiro sector (que inclui IPSS, cooperativas, associações de moradores), portanto nas famílias com menores rendimentos já promovemos este financiamento. Na bolsa de imóveis para arrendamento acessível prevemos que até final de Junho deste ano se avance com um projecto-piloto, numa escala reduzida, em que vamos colocar alguns desses imóveis a concurso. [A ideia é] que cooperativas e modelos de habitação colaborativa possam vir a aproveitar as fontes de financiamento que já hoje existem no IHRU, na lógica de empréstimo, mas também aproveitar o terreno que nós cedemos ao projecto para criar novas respostas.

Já tem ideia onde pode avançar esse projecto-piloto?
Não, ainda estamos a identificar todo o património, mas muito provavelmente será nas áreas metropolitanas. Mas ainda não identificámos o terreno.

Resolver todas as carências habitacionais até ao aniversário dos 50 anos do 25 de Abril já não é possível – as carências continuaram a aumentar, já são mais do que as 26 mil famílias identificadas em 2017. Tem um novo objectivo definido para essa data?
Não vou definir objectivos por vários motivos. Estar a definir objectivos, quando ainda tenho 34 municípios com acordos de colaboração assinados, seria fazer um jogo de dedução de que nenhum de nós beneficiaria. 

O que é mais difícil na relação com os municípios?
Eu diria que não há nada que seja difícil. Todos são muito diferentes na sua forma de actuar, mas há um princípio que é importante e é comum a todos – todos têm a preocupação de acelerar a sua estratégia e dar respostas habitacionais. Essa é a parte fácil. A mais difícil é este trabalho de identificação. É todo um trabalho novo, olhar para o seu território, nas várias dimensões de carência habitacional, e perceber o que é que se encaixa no Primeiro Direito.

Não há dificuldade em aceitarem novas competências nesta área?
Não, porque há mesmo um objectivo comum e esta preocupação comum com o acesso à habitação. Isso facilita logo a concretização destes instrumentos. Falávamos da diferença de pensamentos que temos e felizmente o PRR veio facilitar as respostas.

Havendo dinheiro ultrapassam-se as diferenças.
(Sorriso) Só tenho a dizer bem do trabalho que os municípios estão a fazer junto do IHRU para a concretização do Primeiro Direito e das suas estratégias. 

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