O primeiro trimestre de 2021: um curso intensivo de geopolítica para a UE

Como pode Bruxelas alavancar instrumentos políticos existentes e procurar novas abordagens de política externa que possam ser utilizadas num ambiente de interdependência competitiva?

Os primeiros meses da Presidência portuguesa da União Europeia não têm sido fáceis no plano internacional. Apesar de as presidências rotativas da UE terem um papel diminuído em política externa desde o Tratado de Lisboa, aquilo que se passa no mundo continua a ter impacto na direção estratégica da União.

E 2021 tem sido, até agora, um curso intensivo em geopolítica para Bruxelas. De um litígio com uma grande farmacêutica a um conjunto de contrassanções desproporcionais da China, a política externa da UE está sob pressão. Mas há lições importantes a retirar – incluindo a forma como a União pode transformar a tão criticada desunião entre os Estados-membros numa vantagem, e usá-la para defender os seus interesses e valores na ordem internacional. A questão-chave que se coloca hoje à UE é a seguinte: como pode Bruxelas alavancar instrumentos políticos existentes e procurar novas abordagens de política externa que possam ser utilizadas num ambiente de interdependência competitiva?

A covid-19 é o principal adversário. É isso que mantém os chefes de Estado e de Governo da UE a pé à noite. Enquanto a pandemia não estiver sob controlo, a recuperação económica fica adiada, agravando uma situação já de si difícil. É sob esta pressão brutal que a UE tem que tomar decisões. Para além disso, o combate à pandemia parece estar a contaminar relações tanto com aliados como com adversários.

Tudo começou com a AstraZeneca. Esta falhou nos seus “melhores esforços” para fornecer à UE as vacinas contratadas e a Comissão Europeia tinha instrumentos limitados para a enfrentar. O mecanismo de controlo das exportações que, entretanto, foi criado utilizou-se pela primeira vez em Itália e foi recentemente reforçado. Se continuarem a faltar vacinas na Europa e a pressão pública aumentar, o mecanismo terá que ser acionado, nem que seja para o tornar credível. O dilema é que, nesta eventualidade, pode minar importantes relações diplomáticas e dificultar esforços de vacinação se houver represálias.

As relações da UE com a Rússia, a Turquia e a China têm sido ainda mais difíceis. Nos últimos meses, os laços com os três países deterioraram-se. O fiasco da visita a Moscovo do Alto Representante da UE, Borrell, pode ter clarificado o estado das relações UE-Rússia, mas nada fez para melhorar o nível de diálogo bilateral, o objetivo declarado da viagem. O resultado é uma política reformulada de “conter”, “empurrar para trás” e “engajar,” pouco clara nas suas implicações práticas – o que significa, por exemplo, “empurrar para trás"?

A Turquia é aquele parceiro com o qual não se pode viver, mas também não se pode evitar. Sempre que a UE pensa que as coisas estão a melhorar, elas pioram. Há poucos dias, depois de uma videoconferência com Charles Michel e Ursula von der Leyen, que apelaram ao “desanuviamento” no Mediterrâneo Oriental para promover “uma Agenda UE-Turquia mais positiva,” o Presidente Erdoğan resolveu retirar a Turquia da Convenção de Istambul para combater a violência contra as mulheres. Borrell, rápido a criticar esta decisão, voltava a reafirmar dois dias depois que havia “sinais positivos da liderança turca...” (no Mediterrâneo Oriental), uma posição confirmada pelos líderes da UE a 25 de março.

A China é a mais recente lição neste curso de geopolítica. Depois de encontrar a unanimidade para impor sanções a quatro funcionários chineses e a uma entidade envolvida na repressão dos uigures na região de Xinjiang, Pequim subiu claramente a parada com um conjunto de contrassanções dirigidas a parlamentares e investigadores europeus, a quem acusa de veicularem “desinformação”. Além disso, destinaram-se também aos 27 embaixadores do Comité Político e de Segurança da UE, um ataque à soberania dos seus países membros. A reação tímida da UE até agora significa que ou foi totalmente surpreendida pelo vigor da reação chinesa, ou que a União e os seus países membros continuam sem saber como responder, o que sucede aliás muitas vezes.

Depois de quatro anos de afastamento por causa de Trump, a UE e os EUA estão de volta a uma relação. Mas, a uma relação aberta. O facto de o secretário de Estado americano Antony Blinken ter estado de 22 a 25 de março em Bruxelas para consultas com dirigentes da NATO e da UE e de o Presidente Biden se ter dirigido ao Conselho Europeu a 25 de março, mostram que Washington está mesmo de volta. Este regresso americano a uma política externa mais construtiva é uma janela de oportunidade que a Europa deve aproveitar, até porque se pode fechar em 2024, se não mesmo em 2022, com as eleições intercalares dos EUA. Não há tempo a perder.

Atualmente, é talvez mais difícil chegar a acordo com os EUA sobre as exportações de vacinas do que sobre questões de política externa fundamentais. Lá como cá, pôr fim à pandemia é o objetivo principal. Mas os recentes desenvolvimentos internacionais e aqueles que se antecipam são favoráveis a uma abordagem transatlântica face à Rússia, à Turquia e à China. O relançamento do diálogo transatlântico sobre a China, anunciado a 24 de março, é sinal disso. Mas nem tudo é um mar de rosas. A UE e os EUA olham a China de prismas estratégicos diferentes: para os EUA, a China é o rival estratégico de longo prazo; para muitos na Europa, a China é um parceiro económico essencial. E há outras dificuldades: o gasoduto Nord Stream 2, questões comerciais e políticas digitais.

O dilema central que a UE enfrenta nas suas relações com a Rússia, a Turquia, a China e até com os EUA é muitas vezes a ausência de uma posição comum e a existência de interesses contraditórios dentro da UE. Se sobre a pandemia e a AstraZeneca há um objetivo comum e claro, com Moscovo, Ancara e Pequim o tom soa muitas vezes dissonante ou errático. Estas divergências não são suscetíveis de mudar, e podem muito bem tornar-se o padrão à medida que as relações externas da União se tornam cada vez mais complexas.

Em vez de ficar paralisada pela falta de unidade, a UE deve usar essa ausência estrategicamente. Se servir melhor os interesses da UE num dado momento, a “desunião estratégica” deve ser tão utilizada como a chamada ‘voz comum’ que é tão cara a Bruxelas. Como os últimos três meses demonstram, a União precisa de uma política externa que procure sinergias, mas também que anteveja divergências e que, coordenadamente com os Estados-membros, as utilize estrategicamente nas suas relações diplomáticas. O momento para aprender a fazê-lo é agora. Oxalá o curso intensivo dos últimos três meses em geopolítica ajude.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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