Pandemia e identidade dos profissionais de saúde

A atual pandemia obriga-nos a repensar não só os sistemas nacionais de saúde, mas o próprio exercício da medicina.

A atual pandemia deu ensejo a que se reavivasse uma oportuna reflexão sobre a necessidade de reconfigurar os sistemas nacionais de saúde, que foram postos à prova, reinventados, emergindo, fatalmente, as fragilidades e as potencialidades de cada um. A situação em Portugal esteve em paralelo com o que aconteceu noutros países. O investimento feito neste setor, em recursos humanos e materiais, foi muito além de uma estratégia conjuntural que desse apenas resposta pontual à emergência; os esforços efetuados intentaram, simultaneamente, um reforço estrutural do Serviço Nacional de Saúde, que perdurará para além desta crise.

Há, no entanto, um questionamento mais profundo que não deveria ser omitido neste momento que pode ser um ponto de crise epocal, que nos obriga, ou deveria obrigar, a repensar alguns dos pilares das nossas sociedades: as expressões de solidariedade social, o cuidado dos mais frágeis, a atenção às vulnerabilidades da coesão social, as estratégias de relacionamentos interpessoais, a organização laboral, as prioridades da investigação científica, entre muitos outros. É neste registo que faz todo o sentido também repensar não só os sistemas de saúde, mas a própria medicina.

Toda a crise, enquanto momento decisivo de mudança profunda ou, numa aceção originária do termo, enquanto julgamento purificador, é uma oportunidade de desenvolvimento num determinado sentido. O modo como, por cá, como lá fora, os profissionais de saúde responderam à pandemia foi exemplificativo de um dos elementos mais característicos do ethos médico que definiu esta profissão enquanto tal. Refiro-me à disponibilidade imediata e permanente dos profissionais de saúde para prestar toda a assistência possível, inicialmente num desconhecimento quase total dos perigos que enfrentavam, correndo riscos pessoais para tratar e cuidar, estando ao serviço muito para além daquilo que simples vínculos contratuais exigiriam. Não se questiona, obviamente, a necessidade de assegurar os direitos laborais e as gratificações devidas. O que aqui importa sublinhar é este traço característico da alma da profissão médica, desde tempos remotos, comum também àqueles que hoje designamos por profissionais de saúde.

A medicina foi sempre vista como uma profissão, nesse sentido – algo mais próximo daquilo que hoje designaríamos por “vocação”. Porque, por natureza, exige entrega pessoal, elevados padrões morais, códigos éticos rigorosos, especial responsabilidade perante a sociedade, espírito de serviço, compromisso para com o doente, componente relacional.

O século XX assistiu, na opinião de diversos filósofos (K. Jaspers, M. Heidegger, V. v. Weizäcker), a uma “tecnização” da medicina, que levou a uma desumanização da profissão. Hoje está em causa contrariar essa perda de humanidade dos cuidados de saúde, como advertiram nas últimas décadas diversos pensadores. Isto passará não apenas por essa reconfiguração dos sistemas nacionais de saúde, mas por um repensar autocrítico das profissões cuja tarefa é cuidar, também curando, de pessoas doentes.

O grande médico e filósofo Pedro Laín Entralgo não hesitava em defender que a relação médico-paciente deve assentar numa “amizade médica”. Trata-se de levar a profissão para lá dos patamares da mera prestação ou venda de serviços, de um formalismo contratualista, que esvazia os cuidados de saúde da sua alma. O que está em causa é, pois, reforçar esta nobre profissão com compromisso, empenho em meios eficazes de humanização, espírito de serviço, profundos valores morais e apurados critérios éticos. Felizmente, estamos já num patamar elevado desta identidade das profissões de cuidados de saúde.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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