Que se entreguem medalhas a estes heróis

Hoje venho falar de outro tipo de herói, um herói menor, do qual mal se nota a presença, mas que nem assim deixa de merecer a sua estátua numa praça central da cidade.

Não oferecemos medalhas suficientes aos heróis sem nome. É claro que os incautos dirão que muitos são os heróis que não são condignamente glorificados, e eu não discordo: há os profissionais de saúde, os professores e todos os que zelam pelo bem-estar de toda a comunidade. É verdade. Mas hoje venho falar de outro tipo de herói, um herói menor, do qual mal se nota a presença, mas que nem assim deixa de merecer a sua estátua numa praça central da cidade. Um herói cuja capa já todos vestimos, numa hora ou noutra, num certo momento menos afortunado das nossas vidas.

O que é triste é que também eu permanecia adormecido e raramente me apercebia do quão dura é a vida de todos aqueles que, de tempos a tempos, são obrigados a levar a cabo uma tarefa hercúlea que tanto tem de serviço quanto de caridade, já para não falar da cordialidade. A dormência dos meus sentidos encontrou o seu dia fatídico neste último fim-de-semana: onde moro, ainda há o costume de esperar pela carrinha do padeiro, e alguns habitantes deste recanto suburbano formam uma fila dez minutos antes da chegada da padaria ambulante. Nessa fila, reparei eu, estava um jovem dos seus dezanove anos ao lado de uma senhora que, provavelmente, já trazia netos no cadastro.

Ela levava a cabo uma narrativa que, mesmo que quisesse, não me seria possível compreender, tal era o ponto adiantado daquela história. Posso jurar ter ouvido um “eu estava a chegar ao ponto de a apanhar por trás, já ao pé do toldo dos ananases, e espetar dois socos na nuca daquela gaja”, e não percebi se a senhora era prima afastada do Tarzan Taborda ou se falava dos seus tempos já longínquos de escritora de contos do fantástico. O moço nada dizia, mas do seu olhar emanava um clamor ténue mas desesperado por ajuda.

Fui à minha vida e, daí a uns dez minutos, ao regressar, notei que o par ali se mantinha, imóvel, ela continuando a sua história, e ele já apoiado à parede, não fosse o aborrecimento dar-lhe cabo do equilíbrio, enquanto soltava uns trémulos “pois, pois” e “claro” e “hm, hm”, ali na fina fronteira entre o não ser mal-educado e o não encorajar demasiadamente o prolongamento da história, como quem vai perguntando “quando é que esta bandalha fecha a matraca?”, ou a orar aos padroeiros da padaria que apressasse a chegada da carrinha.

Benditos sejamos nós por a evolução nos ter oferecido a ferramenta valiosa que é a mentira. A quantidade de sentimentos que evitámos magoar porque pudemos mentir. Imagine-se o que seria de nós se não tivéssemos esta aptidão natural para escutar amigavelmente tudo aquilo que não temos assim tanta vontade de ouvir. E, ainda assim, eis-nos estóicos a aguentar aquelas pessoas que tanto falam e tão pouco dizem, sem que nos saia disparado um palavrão, seguido de um virar costas e adeusinho, ó chatarrão. Mas medalhas, nem vê-las.

Às tantas, é por isso mesmo que não nos entregam um prémio pela paciência nem pela decência de não sermos uns palermas com as pessoas que falam demais: é como se ganhássemos créditos para roubar a pachorra aos outros no futuro – decerto já todos incorremos nesse pecado, o de contar uma história demasiado longa, obrigando alguém a ouvir-nos dizer o que nem a nós interessa. Porque ninguém está livre de ser a avozinha, e ninguém está livre de ser o jovem. E, se nunca foste o jovem, provavelmente és sempre a avozinha. Não sejas avozinha.

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