Candeeiros e estrelas

Contentávamo-nos com aqueles 15 dias de campo e regressávamos, revigorados. Tristes por voltar à vida da cidade, mas “de baterias carregadas”, dizia-se sempre.

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Paulo Pimenta

Nasci e cresci em Lisboa. O palco da minha infância, da minha adolescência e da minha descoberta da vida foi esta cidade. Não pensava se gostava, se não. Era-me natural.

Era natural percorrê-la em autocarros, no metro, em táxis e eléctricos. Mas sobretudo a pé, pelo prazer de andar a pé. Ir às lojas com as amigas e parar para comer um gelado no degrau da rua inclinada. Acordar com pregões do vendedor de rua, com os estores dos vizinhos, com o som da buzina do homem stressado com o carro em segunda fila. As conversas nas paragens de autocarro e a união que a revolta pelo atraso do 713 pode gerar entre as pessoas. A bica, o queque, a conta. A “atenção ao intervalo entre o cais e o comboio”. A oscilante “bondade de auxiliar”. Cinema uma vez por semana, pipocas grandes. As avós nos cabeleireiros. Esplanadas coladas aos carros. O vento abafado pelos prédios, as estrelas apagadas, os candeeiros a acenderem ao lusco-fusco. Voltar da escola a pé, parar nas livrarias, percorrer a cidade de lés a lés em direcção ao poiso dos amigos naquela tarde. As tascas, as “jolas”, os muros. Os grupos, as tardes que se transformam em noites e em madrugadas. Conhecer os nomes das ruas, descobrir novos cafés, encantar-me pela zona histórica, reclamar dos turistas. Os pombos usurpadores dos restos das mesas desocupadas. Os grupos de universitários, os namorados nos bancos de jardim, as crianças nos parques infantis, os engravatados em liberdade nas horas de almoço.

Com a chegada do calor, a busca desenfreada pelas piscinas e a apropriação dos parques, estender a toalha na relva e levantar a camisola, procurando o bronze entre uma aula e outra. Os ares condicionados das farmácias nas quais entrava para escapar ao calor, no Verão, e o fumo quente dos vendedores de castanhas que me aquecia nos dias frios. Os bitoques, as toalhas de papel, os guardanapeiros. Os guardanapos de papel demasiado finos, usados aos molhos. O pão com chouriço nas padarias abertas de madrugada a seguir às saídas à noite ou as roulottes de cachorros-quentes, encomendas divinas. Os centros comerciais que todos dizem que odeiam mas a que todos vão. As escadinhas íngremes, o graffito que tem o nosso nome. A bomba de gasolina de estimação, providencial. Os ciclistas desenfreados, as trelas dos cães emaranhadas, os malabaristas nos semáforos. Os cachecóis e cânticos no metro em dias de jogo. Estar carregada de sacos, encontrar alguém e pousar os sacos para conversar no meio da rua. O cheiro a cigarro. As sombras das roupas nos varais projectadas nos prédios amarelados pela luz da tarde. Os pratos e os copos cheios. A noite. Os Santos Populares e a fragmentação da população entre quem os ama de paixão e quem não suporta esta época festiva. Pertenço aos primeiros. Sardinhas, bailaricos, andar até ficar com os pés pretos, buscar a diversão pelas subidas apinhadas, sem nunca ter a certeza de que a encontrámos.

As montras das pastelarias que ostentam bolos que conhecemos de vista desde sempre, mas que nunca provámos. O Tejo, o pãozinho com manteiga e as azeitonas.

Vida de cidade não é suficiente para a classificar. É vida de Lisboa. Os lisboetas têm as suas próprias Lisboas. E esta é a minha.

O campo era a visita das férias, o ar que me regalava de absorver enquanto alguém perguntava: “Não há nada como o ar puro, pois não?” O prazer bucólico e sonhador do citadino à primeira baforada de alecrim. Contentávamo-nos com aqueles 15 dias de campo e regressávamos, revigorados. Tristes por voltar à vida da cidade, mas “de baterias carregadas”, dizia-se sempre. A tristeza durava pouco, logo voltávamos à rotina, e a nossa rotina tem wi-fi, delivery de comida e duas voltas ao bairro à procura de lugar para o carro.

As minhas temporadas no campo acalmavam-me e faziam-me impreterivelmente questionar quem era eu sem o meu palco. E quem eu era no campo não me desagradava. Pelo contrário, era a derradeira confirmação dos clichés: andava livre, de cabelos soltos ao vento e pés na lama. Sentia-me feliz, sem saber se era a pouca duração das minhas imersões campestres que intensificava o amor ou se genuinamente era uma pessoa do campo, que calhou nascer na Avenida de Roma.

Pois bem, o inesperado aconteceu: rendi-me à vida de campo. Dito assim, parece que me entreguei à ruralidade e que moro numa quinta, ando de tractor e pego na enxada de sol a sol. Não é bem assim. Mas os meus vizinhos têm ovelhas, por isso acho que para o efeito está a valer. Há um ano mudei de casa e saí de Lisboa. Não sei se é entusiasmo de principiante ou resultado da pandemia que, decerto, ajudou a valorizar o ar livre. Não sei se é consequência da música da Elis Regina que canto desde criança: “Eu quero uma casa no campo.” O facto é que dou por mim a reparar nas novas flores da Primavera e a entusiasmar-me a vê-las despontar, como se fossem novas lojas a abrir nas ruas de Lisboa. Agora, os meus caminhos são de terra batida e cruzo-me com carneiros e galinhas. Vou buscar o pão de bicicleta, no meio dos pinheiros. Vejo multidões de estrelas e já distingo os cantares dos pássaros. Descubro encanto na chuva e no sol e estou a fazer uma horta. Sinto que me transformei num Jacinto de A Cidade e as Serras e que me encontrei, abraçando a natureza e a condição efémera mas transcendental da vida. Talvez seja mesmo como o Jacinto, ao constatar que “na cidade nunca se olham os astros por causa dos candeeiros que os ofuscam: e nunca se entra por isso numa completa comunhão com o universo”. Converti-me às manhãs e ando com a presunção de quem já sabe o que é uma bétula, um zimbro e um ulmeiro.

Nas visitas a Lisboa, estranho os apartamentos encarcerados, o trânsito e a desordem urbana que me desalinha. No entanto, relembro que a minha natureza não é a Natureza. Ao caminhar a pé pelas ruas da cidade, passando pelas montras com palmiers e pastéis de nata, pelas pessoas com sacos e pelos jovens encostados aos muretes, recordo-me dos meus trajectos de infância e das histórias que vivi resguardada entre os prédios. Os candeeiros acendem em sintonia com a chegada da noite e com o meu passeio, uma bênção mais autárquica que divina, e sinto-me aconchegada. E, então, mesmo sem estrelas à vista, parece que estou em comunhão com o universo. Não o universo desconhecido, infinito, ilimitado, silencioso. Mas um universo familiar, de luzes, cheiros e fumos. Um universo limitado, de calçadas, corrimãos e esquinas. Um universo barulhento de buzinas, raspanetes, cumprimentos. Um universo em que orbitam as pessoas de quem gosto. Um universo chamado casa.

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