A crise de valores é mais “uma transformação do que uma falha moral”

A liberdade, tal como a conhecemos enquanto sociedade democrática, não está em perigo. Necessita, sim, de estar sob constante vigilância, para que os seus valores não se diluam. Só assim é possível aspirar a uma cidadania activa e consciente de valores como a solidariedade, a igualdade e a justiça. A qualidade do ensino, nas escolas e universidades, e a promoção da literacia são os pilares desses preciosos bens comuns.

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Reuters/DADO RUVIC

Estaremos a atravessar uma crise de valores ou é apenas um passo na evolução acelerada da sociedade, cujas instituições que alicerçam as democracias não conseguem acompanhar? As conclusões do debate Liberdade, cidadania e responsabilidade em tempos de crise de valores, do ciclo Psuperior Talks, não são definitivas, mas ficou assente a necessidade de ter sempre o dedo perto do botão de alarme e estar atento aos sinais. O sistema de ensino tem aqui um papel decisivo, já que é através da educação e da promoção da literacia que as sociedades evoluem no sentido da inclusão, da igualdade e da solidariedade.

“Aquilo que consideramos ser uma crise de valores é mais uma transformação da nossa sociedade do que uma falha moral.” A afirmação é de Pedro Bacelar de Vasconcelos, constitucionalista e deputado do Partido Socialista, para quem a suposta fragilidade de valores é “algo sempre presente” na história da Humanidade. “O outro está em permanente mutação e as alterações são sempre algo de inédito”, acrescentou.

Este foi um dos pontos base do debate promovido pelo PÚBLICO, com o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e o apoio da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Além do constitucionalista, juntaram-se à mesma mesa virtual Ana Vitória Azevedo, administradora da SCML, Humberto Martins, investigador e professor da UTAD, e Maria Ferreira, presidente da Associação Académica da UTAD. A moderação esteve a cargo de Manuel Carvalho, director do PÚBLICO.

A melhor forma de enfrentar esse lado “inédito” da mudança é através do ensino, da promoção da literacia, desde os níveis de escolaridade mais básicos até ao universitário. Para que se conquiste nos mais jovens os hábitos da curiosidade, do debate e da constante interrogação acerca do que os rodeia. Especialmente num tempo como este, em que, como frisou Ana Vitória Azevedo, “a informação é mais rápida e perigosa com as redes sociais, do que era com a informação física [livros, jornais...]”.

“Temos de assumir que este é um mundo das redes sociais, das tecnologias e não vamos andar para trás”, continuou Ana Azevedo, remetendo para a necessidade de adaptação do sistema de ensino. “O papel dos professores é o de ‘cola’ da informação e dar-lhe sustentabilidade, para que os alunos tenham uma atitude crítica em relação ao que lêem”, disse.

Pedro Bacelar de Vasconcelos acredita que o sistema de ensino “devia contemplar outras formas de expressão artística, muito mais do que o acervo de informação de diferentes disciplinas sujeitas a avaliação”. Até porque, acrescenta, “alguma dessa informação vai, a curto prazo, revelar-se inútil e é no convívio que se aprende a respeitar o outro”.

Humberto Martins critica o papel das universidades no xadrez da cidadania: “Ao nível dos curriculae, o que promovem é um ethos individualizante, sem respeito pelo outro, impedindo os indivíduos de serem mais solidários”. Uma posição semelhante à de Maria Ferreira, para quem “a escola tem de ir muito mais além dos conceitos, da transmissão de informação”, lembrando que nos níveis básicos de ensino “se dá relevo ao comportamento, aos valores, mas na universidade é só às notas”.

As redes sociais e a liberdade

Para a construção de uma cidadania activa e mais consciente dos problemas é impossível contornar o papel das redes sociais. Como definiu Maria Ferreira, “as redes sociais estão a colocar o problema de serem todos iguais”, de alinharem “em modas”, impedindo assim a discussão de temas “que exijam mais pensamento. Há uma uniformização do pensamento fomentada pelas redes sociais”.

Pode ser esse um sinal de menor liberdade? Humberto Martins prefere falar em “ilusão”, quando o tema é o acesso igual à informação ou à manifestação da opinião de cada um. “Pensar que dominamos o nosso ecossistema é uma falácia” – defende, acrescentando: “Sociologicamente, a liberdade é uma impossibilidade, pois é feita de códigos, de concessões”.

Além disso, “os meios de comunicação não são universalistas, pois é possível criar representações da realidade, as fake news. A própria Constituição da República Portuguesa garante a possibilidade de nos reconhecermos na diferença, mas depois há entraves legais que impedem sermos todos iguais perante a lei”, disse Humberto Martins.

Na opinião de Pedro Bacelar de Vasconcelos, a evolução das sociedades está intimamente ligada aos meios de transmissão de informação, lembrando o “forte papel de mediação” da imprensa dos primórdios, com actores e consumidores de “níveis sociais mais instruídos”. Com a universalização do acesso aos meios de comunicação, os cidadãos ganharam mais consciência da sua “falta de influência, de importância, de irrelevância do que dizem”, transformando as redes sociais num palco para “as opiniões mais desvairadas”.

No caso da influência da actual crise pandémica no acentuar das desigualdades sociais parece não haver dúvidas. Pedro Bacelar de Vasconcelos sintetiza assim o quadro social: “Os tempos de crise permanente são a casa das desigualdades. A pandemia veio agravá-las no nosso país, porque as instituições não estão preparadas para dar resposta a situações excepcionais.”

Numa análise mais aprofundada ao sistema democrático como o concebemos, o constitucionalista defende haver “muita gente que se sente frustrada, porque não consegue realizar as ilusões que lhes foram criadas” por uma cultura capitalista, de sucesso e de oportunidades iguais para todos. Ou, como disse Humberto Martins, “a horizontalização das possibilidades não existe”.

Este professor universitário considera, porém, que a crise de valores aqui posta em questão, especialmente nos mais jovens, é “um mito”, por ser “etnocêntrica e sociocêntrica”. “Os jovens não se tornaram seres acríticos, indiferentes. Não há um abandono da causa pública.”

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