O pântano da tristeza

Tornou-se evidente que estava perante um especialista em tangas e em nacos de carne. Sabia como amaciá-los primeiro para depois lhes atacar o lombo. Ficou logo bem apresentado no bairro; é um boteco a não repetir.

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SHOT/Unsplash

“A ideia não é minha”, disse o talhante, deixando tombar na bancada o naco de carne. “Ouvi-a num filme há muitos anos, sabe? Era puto e na nossa casa só havia televisão a preto e branco. Deve ser por isso que nunca me esqueci do sacana do filme, foi a primeira vez que fui ao cinema.” Pegou num martelo e começou a bater na carne. “Gostei de tudo no filme A História Interminável. Lembro-me bem dos dois putos principais, da fantasia dos mundos, do gigante de pedra, do dragão com escamas, que tinha os olhos mais meigos que eu já vi na vida; vendo bem, a minha mulher tem os olhos parecidos com aquele dragão, sabe? Nunca tinha pensado nisso.”

Depois, com uma faca grande e afiada, começou a tirar bifes. “Realmente, a nossa cabeça é uma máquina fotográfica impressionante. Nunca sabemos os retratos que para aqui ficam guardados.” Foi pondo os bifes dentro de um saco de plástico transparente fininho e levou-o até à balança. “Seiscentos e vinte gramas, está bom assim, ‘miga?” Não somos amigos, é a primeira vez que nos vemos; mudei de bairro e ando a conhecer os botecos novos. Mas disse-lhe que sim, estava bem assim. Pegou na esferográfica com a mão suja de sangue e começou a fazer as contas num bloco já todo emporcalhado de nódoas secas. “Mas sabe o que me marcou mais no filme?” A pergunta era claramente de retórica, pois continuou a falar sem fazer pausa. “Aquilo de que nunca me hei-de esquecer é da imagem do ‘pântano da tristeza’. O amigo do miúdo da história era um cavalo branco, um companheirão a sério. Quando tentaram atravessar o pântano da tristeza, o cavalo começou a ficar soterrado na lama. Por mais que o miúdo o puxasse pelas rédeas e gritasse ‘Não podes deixar-te levar pela tristeza! Anda, avança!’, o cavalo não conseguia mexer-se. Foi ficando cada vez mais afundado na lama, até desaparecer.”

Não estava capaz de o interromper, perguntando quanto era que tinha de pagar pelos bifes. “O miúdo do filme fartou-se de chorar ao ver desaparecer o seu amigão cavalo no pântano, e eu também encharquei de lágrimas a camisola que trazia vestida, como um babete, e nunca me esqueci daquela cena. Ficou-me para a vida. Na altura, não percebi que era uma lição, chorei porque tive pena do miúdo e porque gostava do cavalo. Mas até hoje, naqueles dias em que estou mais em baixo, me lembro do pântano da tristeza. E sou sempre o miúdo e o cavalo. Esses dois ficaram dentro de mim como vozes de comando: ‘Não te deixes levar pela tristeza. Anda, avança!’.”

Paguei a conta e fiquei impressionada com o talhante com cerca de 40 anos, que partilhou comigo aquela história. Fiquei sensibilizada. Mas ao virar costas e preparando-me para sair, ouvi algo que estragou tudo. Perguntou-me se era casada, que caso não fosse, e com todo o respeito, tinha de me dizer que há muito tempo que não lhe entrava uma mulher tão jeitosinha no talho. Assim mesmo, jeitosinha. Pareceu-me, então, óbvio que contava a história do pântano a todas as jeitosinhas novas que lhe entravam no talho. Tornou-se evidente que estava perante um especialista em tangas e em nacos de carne. Sabia como amaciá-los primeiro para depois lhes atacar o lombo. Ficou logo bem apresentado no bairro; é um boteco a não repetir. 

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