Censos 2021, entre o dever cívico e a invasão da privacidade

Em Portugal, os censos realizam-se até 5 de Maio. Apesar de haver uma pergunta sobre o género, desconheço o seu conteúdo. Mas uma coisa é certa: para além de já haver uma pergunta referente ao país de proveniência, este ano introduz-se uma nova pergunta sobre o motivo de migração. Pergunto-me porquê, mas não acredito em coincidências.

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Adriano Miranda

Realizado a cada dez anos, mais precisamente no início de cada decénio, os censos têm como objectivo primordial fotografar a população de um país, dar a entender a sua composição a nível social, económico, étnico, cultural, religioso, incluindo o parque habitacional e a sua constituição.

Estando a residir no Reino Unido, onde os censos se realizaram a 21 de Março, entreguei o respectivo formulário, desta feita online, devido à presente pandemia. As perguntas, no entanto, não vieram sem o seu quê de surpresa.

“Nome.” Dou o meu nome.
“Reside nesta morada?” “Sim, resido.”
“E para além de si, mais alguém reside nesta morada?” “Sim, a minha mulher.” Dou o nome da minha mulher.
“E para além da sua mulher, mais ninguém reside nesta morada?” “Não”, respondo.
“Tem a certeza de que não vive mais alguém nesta morada?”, e aqui começo a desconfiar. A desconfiar não apenas da repetibilidade e persistência mas também do porquê e qual o fundamento.
“Não, mais ninguém vive nesta morada”, repito.

Pergunta a seguir, a roçar a cacofonia:
“E quem mais reside nesta morada? Familiares? Inquilinos?” E aqui ficamos a saber o porquê: “Pessoas que normalmente vivem fora do Reino Unido mas que estão no Reino Unido durante três ou mais meses?” Para depois ler no texto explicativo sobre a necessidade de incluir não apenas residentes britânicos que possam estar a residir na minha morada temporariamente por motivos de trabalho, mas também pessoas que vivam fora do Reino Unido passíveis de estar em território nacional por motivo de trabalho, saúde ou educação.

Não contentes, e porque é premente continuar a investida, continuam:
“Disse que duas pessoas estarão a residir nesta morada no dia 21 de Março [dia do censo nacional]. E quem mais estará nesta morada no dia 21 de Março? Pessoas que normalmente vivem noutro local no Reino Unido, por exemplo, namorado, namorada, amigos, familiares? Pessoas que estão aqui a residir como segunda morada, por exemplo, por motivos de trabalho? Ou pessoas que normalmente residem fora do Reino Unido...” E o resto vocês já sabem. “Não”, respondo, “mais ninguém estará nesta morada no dia 21”, para de seguida pensar “e se estivesse também não vos diria porque vontade não falta”.

Infelizmente, não podemos falar com um formulário, para mais um formulário online que nem papel é para poder rasgar, e ainda bem que o ambiente pesa para estes lados e se sente nos ombros e nas pernas quando cada vez menos o estrangeiro, o diferente, o desconhecido não é bem-vindo, acolhido, pretendido.

Coloquemos em questão a pertinência dos censos e que autoridade têm as autoridades de desencadear aquilo que mais parece uma caça às bruxas a nível nacional. Que tipo de cooperação e honestidade esperam de quem não é branco, louro, alto e com os olhos azuis? Reminiscências de um passado que nunca passou, antes bem presente, apenas escondido, pelo menos até agora?

“Qual o seu país de nascimento?”, “Em que data chegou ao Reino Unido?”, “Como caracteriza o seu conhecimento da língua inglesa?”. Mais importante: “Qual é a sua nacionalidade?” E se eu ainda tenho a sorte de uma dupla nacionalidade, o que dizer dos milhões aqui residentes que não têm?

Mudando de tópico, “Qual é o seu género sexual? Masculino? Feminino? Outro? Descreva”, para de seguida acrescentar: “Qual a sua orientação sexual? Heterossexual? Homossexual ou lésbica? Bissexual? Outro? Descreva.” E como felizmente ambas as perguntas são de cariz voluntário, não respondo. Porque se as perguntas em si, introduzidas este ano pela primeira vez num censo, são uma conquista para a autodeterminação sexual, quem nos garante a privacidade desta informação numa sociedade, não, num mundo onde ainda estamos longe da liberdade há tanto desejada? Para mais quando a morada e o local de trabalho fazem parte das perguntas obrigatórias nos censos. 

E porquê repostas tão limitativas numa época em que mais de 50 tipos de género estão reconhecidos, do transgénero ao não-binário, do andrógino aos dois espíritos, do género fluido ao questionamento de género? Eu, por exemplo, sou cis masculino. E quanto à orientação sexual, como explicar a ausência de mais de duas dezenas de orientações, do “androssexual” ao “arromântico”, do “bicurioso” ao “demissexual”, do poliamoroso ao “skoliosexual”, do “monossexual” ao “graysexual”?

Porque os censos não são apenas um inquérito, são o espelho de um país, e enquanto não reconhecermos a diversidade do mesmo, a inclusão e a aceitação serão uma miragem, um sonho apenas permitido quando, por breves momentos, fechamos os olhos.

Em Portugal, os censos realizam-se até 5 de Maio. Apesar de haver uma pergunta sobre o género, desconheço o seu conteúdo. Mas uma coisa é certa: para além de já haver uma pergunta referente ao país de proveniência, este ano introduz-se uma nova pergunta sobre o motivo de migração. Pergunto-me porquê, mas não acredito em coincidências.

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