Podem ser raros, mas não devem ser esquecidos

A pandemia de covid-19 acentuou alguns problemas já vividos pelos doentes raros e identificou outros. A pensar nisso, o projecto “Ser Raro”, criado pela consultora FDC Consulting, com o apoio da Takeda, tem o objectivo de preparar o futuro, identificar necessidades e propor soluções para a melhoria dos cuidados e da qualidade de vida das pessoas com doenças raras.

Foto
Getty Images

São pessoas mais esquecidas e em menor número do que aquelas que sofrem de doenças crónicas. Mas os desafios que enfrentam são equiparados e enunciados por Paulo Gonçalves, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM) e membro da RD-Portugal. “Refiro-me à falta de diagnósticos, de tratamentos farmacológicos e não farmacológicos, à falta de exames complementares de diagnóstico e de acompanhamento a cuidadores. No que se refere à vacinação de covid-19, estes doentes foram ignorados”, avança. O projecto “Ser Raro” nasceu no dia 28 Fevereiro de 2021 com o intuito de juntar peritos nacionais e parceiros ligados a esta área da saúde, ao longo de um ano, com o objectivo de apresentar na mesma data, mas em 2022, as reflexões e as recomendações saídas deste fórum, capazes de apoiar a redefinição de tudo o que está a ser pensado e elaborado para as doenças raras, para a próxima década.

São quatro as estratégias principais da iniciativa a debater: o impacto e agravamento da pandemia nas doenças raras; como melhorar o diagnóstico e o tempo de diagnóstico nas doenças raras; como potenciar a investigação nesta área e prestar apoio psicológico, social e económico às pessoas com doenças raras e às suas famílias. “Há um mito de que os peritos e especialistas na saúde conseguem debater e encontrar soluções sem os doentes ou com uma amostragem irrepresentativa. Quero acreditar que este projecto quer ser diferente”, ressalva Paulo Gonçalves.

Foto
“Há um mito de que os peritos e especialistas na saúde conseguem debater e encontrar soluções sem os doentes ou com uma amostragem irrepresentativa. Quero acreditar que este projecto quer ser diferente” Paulo Gonçalves, SPEM

O que se espera alcançar?

A Direcção-Geral da Saúde está a desenhar a Estratégia e Programa Nacional para as Doenças Raras para a próxima década com a definição de objectivos até 2030. Em paralelo, o projecto “Ser Raro” conta com a presença de várias personalidades e especialidades (medicina interna, farmacologia, alergologia e imunologia clínica, neuropediatria, entre outras), num Comité Executivo que vai contribuir para a discussão destes temas, cujos resultados serão apresentados a 28 de Fevereiro de 2022, como resultado de quatro momentos a realizar ao longo do ano, em Abril, Junho, Setembro e Dezembro. “Esperamos alcançar alguns consensos e recomendações que possam apoiar a estruturação da nova Estratégia para as Doenças Raras, divulgar esta temática tão importante para esta população de doentes, suas famílias e cuidadores, motivar a aposta na formação dos profissionais de saúde e contribuir para a literacia para a saúde para esta área da patologia humana”, defende Luís Brito Avô, coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (NEDR-SPMI).

Paulo Gonçalves destaca ainda a relevância do Registo Nacional das Doenças Raras que, na sua opinião, permitirá “mapear, identificar, alocar e poupar recursos”. Pretende-se ainda trazer para a discussão, “o doente no centro que é algo que se fala muito, mas faz-se pouco. Por último, aproximar a investigação do terreno, fora do laboratório”.

Há muito a fazer no campo das doenças raras e essas necessidades têm sido identificadas ao longo dos anos. Como por exemplo, “potenciar a formação dos profissionais e a literacia em saúde para estas doenças, continuar a estruturação dos centros de referência e divulgação da metodologia da referenciação dos doentes, facilitar o acesso aos meios de diagnóstico, particularmente na área da genética, acelerar a aprovação e acesso aos medicamentos órfãos já existentes e estruturar o acesso às terapêuticas domiciliárias. Por último, incentivar a investigação biomédica nesta área”, refere Luís Brito Avô, também consultor de medicina interna no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte - Hospital de Santa Maria.

Foto
"Esperamos alcançar alguns consensos e recomendações que possam apoiar a estruturação da nova Estratégia para as Doenças Raras, divulgar esta temática tão importante para esta população de doentes, suas famílias e cuidadores, motivar a aposta na formação dos profissionais de saúde e contribuir para a literacia para a saúde." Luís Brito Avô, coordenador do NEDR-SPMI.

Devido à sua formação profissional, Helder Mota-Filipe, professor da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FF-ULisboa), considera fundamental discutir temas relacionados com a terapêutica. “Infelizmente, ainda não há medicamentos eficazes para todas as doenças raras e, para outras, existem os chamados medicamentos órfãos. Quando passam a existir são, muitas vezes, muito caros e a sua acessibilidade torna-se mais complicada.” Neste projecto “Ser Raro”, há que discutir o difícil equilíbrio entre o que há a melhorar e aperfeiçoar no sentido “de garantir que os doentes têm acesso à terapêutica de que necessitam sem colocar em causa a sustentabilidade dos sistemas de saúde”, sublinha.

No que respeita à deslocação de doentes à farmácia hospitalar, o docente defende que é possível poupar recursos ao Estado, sempre que os doentes estejam devidamente controlados, evitando faltar ao trabalho mensalmente, aspecto que é discutido há anos. “É essencial que os farmacêuticos comunitários possam ter acesso à informação que os farmacêuticos hospitalares dispõem para lhes permitir fazer uma dispensa adequada dos medicamentos. Para tal, é preciso que haja partilha de dados e que os sistemas informáticos funcionem.” Tal solução permitirá aos farmacêuticos hospitalares dedicarem-se a outras áreas importantes.

Doentes unidos

As necessidades são graves e as associações de doentes não têm facilitado no que respeita a fazer ouvir a sua voz. Ainda existem duas federações de associações de doenças raras desde há uma década e mais de duas dezenas de outras que não estão alinhadas em nenhuma delas. “Estamos a unir as associações e acredito que o processo fique concluído no segundo trimestre para definirmos em conjunto as nossas prioridades”, refere Paulo Gonçalves.

“Estes doentes são vítimas da pandemia mesmo sem terem sido infectados com covid-19. Paralelamente aos cuidados que se prestam aos doentes infectados com covid-19 é preciso que se olhe para outras pessoas que estão a ter um menor acesso aos seus cuidados por causa da pandemia e a ter menor qualidade de vida”, foca Helder Mota-Filipe. Mas como passar deste fórum de discussão para uma oportunidade de melhoria? “As propostas que iremos concretizar devem chegar a quem decide, mas tem de haver vontade política para mudar esta situação”, explica. Mas não só, salienta Brito Avô. A aplicabilidade prática dependerá também “da afectação de meios humanos, dos departamentos dos serviços de saúde e da disponibilidade económica a alocar nesta área”.

Foto
“As propostas que iremos concretizar devem chegar a quem decide, mas tem de haver vontade política para mudar esta situação.” Helder Mota-Filipe, FF-ULisboa

Estima-se que existam entre 7000 a 9000 doenças raras em Portugal. Todas elas com as suas especificidades. Estes doentes precisam de acompanhamento regular e personalizado. Não querem, não devem nem podem ser esquecidos.

As pessoas com doenças raras querem fazer ouvir a sua voz e a iniciativa “Ser Raro” pretende ajudar a definir recomendações que poderão – ou não – ser aceites por quem está a desenhar o Plano Estratégico. “Fomos convidados muito recentemente pela Comissão Técnica de Vacinas contra a covid-19 com um prazo de 48 horas para responder”, exemplifica Paulo Gonçalves. Foi então elaborado, em apenas 24 horas, um documento assinado por 26 associações de doenças raras que reúne um consenso entre todas elas e com um sumário de recomendações sobre prioridades e contra-indicações para a vacinação contra a covid-19 e algumas especificidades das associações com alertas por patologia, o que demonstra a vontade de colaborar e a proximidade com a saúde baseada em evidência”, conclui.