Quem não semeia, não colhe

Os cenários fazem-se entre estes protagonistas. Aqueles a quem a política se destina olham desconfiados à espera. Talvez aguardem pelos que lhes “ofereçam” mundos e assim não tenham que se esforçar, como se tal fosse possível.

A pandemia tem contribuído para que a política se encaixe cada vez mais nos meandros de parte dos órgãos de soberania. Já muito da intermediação da política tinha passado para os media, virando comunicacional e perdendo bastante da ligação direta aos cidadãos.

Se antes da eclosão da pandemia a participação cidadã já era reduzida, esporádica e de pouca intensidade, incluindo nos movimentos sociais mais aguerridos, como no caso sindical, entretanto, diminuiu com as limitações óbvias de caráter sanitário.

A distância entre a cidadania e a política aumentou. Erradamente, a perceção que os cidadãos têm acerca do futuro é de descrença. É um fenómeno complexo e contraditório. Desconfiam, mas não rompem com as opções eleitorais que geram esse estado de alma; falta a coragem social.

A crueza dos desafios faz ainda muita gente pender para o lado dos que apregoam o populismo de extrema-direita, embora saídos do sistema que dizem ser a vergonha. Nasceram e medraram no que chamam pântano e agitam bandeiras que geram oportunismos sociais nos desesperados e ou atingidos. Entre o levantarem-se e a raspadinha jogam nesta última.

Ao mesmo tempo, a revolução das mil fantasias tecnológicas fecha-nos para a realidade. Um clique, uma passagem dos dedos e eis que tudo está no ecrã. Falta a consciência da importância do relacionamento dos seres humanos.

Estoutro confinamento no mergulho virtual despido do encanto ou desencanto próprio da aprendizagem da socialização agrava o outro, reduz possibilidades transformadoras.

A política, neste contexto, torna-se ainda uma arte de maiores dificuldades para a democracia enquanto sistema e fica mais facilmente à mercê dos que a pretendem amordaçar. Quanto mais os cidadãos se afastarem da política, mais esta empobrecerá. O próprio valor da palavra se reduz, sendo a palavra o que nos distingue dos outros animais.

Assistimos ao diferendo entre a AR, o Governo e o PR. Parece que tudo se passa ali, entre aqueles atores, mais uns tantos comentários dos dirigentes partidários nos media.

Marcelo parece pretender deixar Costa à mercê do decidido na AR. Costa entende que o diploma viola a Constituição. Afinal, a convergência estratégica não se verifica neste caso, a mesma que levou Costa na Autoeuropa a lançar a candidatura de MRS. Este sobreleva a importância da estabilidade contra o que designa de duas crises – sanitária e social –, tentando esconder que a sua posição acrescenta combustível ao conflito institucional. Marcelo deixou o governo minoritário mais só. Joga outro jogo. Já não poderá ser candidato.

Talvez o PS não tenha interiorizado que sem acordos tácitos ou expressos com as esquerdas não pode governar, salvo se virar o azimute.

Marcelo é um político hábil, batido, endurecido por mil batalhas e tem em mente algo. A espera é uma arte.

O PSD votou com as esquerdas; há eleições em outubro, precisa de muito mais do que o que tem feito. Procura nas camadas médias mais necessitadas apoios eleitorais.

As esquerdas reclamam mais apoios aos atingidos duramente pela crise. Se há dinheiro para o Novo Banco, por que não pode haver para quem está totalmente desamparado?

Os cenários fazem-se entre estes protagonistas. Aqueles a quem a política se destina olham desconfiados à espera. Talvez aguardem pelos que lhes “ofereçam” mundos e assim não tenham que se esforçar, como se tal fosse possível.

Neste mar alto de tantos jogos talvez saiam vencedores os manobristas. Só a intervenção dos cidadãos quebraria este risco.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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