Uma violação das regras europeias? O Estado português e a EDP

Cabe à Comissão Europeia averiguar em profundidade este caso e, a confirmarem-se os dados que têm vindo a público, repor a legalidade europeia contra a confrangedora permissividade das autoridades nacionais face às regras dos concursos públicos e aos auxílios estatais.

1. Talvez nada espelhe melhor as contradições do Estado português em matéria de modelo económico, de serviço público e de segurança relacionada com infra-estruturas críticas do que a empresa Energias de Portugal (EDP). A estas contradições não escapa também a União Europeia numa aplicação por vezes excessivamente redutora das regras jurídicas relacionadas com o mercado único. Na sociedade portuguesa há hoje uma forte discussão pública sobre a transmissão/venda pela EDP da concessão de exploração de seis barragens no Alto Douro para um consórcio empresarial liderado pela francesa Engie, sem o devido pagamento de impostos ao Estado português. Mas vamos recuar no tempo para termos uma percepção clara sobre como foi possível chegar a esta situação.

2. Tal como era vulgar na Europa e em grande parte do mundo até aos anos 1990, a EDP era um empresa pública pela importância da produção e distribuição de electricidade, matéria de inquestionável interesse público. Em Portugal, o sector público empresarial era ainda particularmente forte devido às nacionalizações de 1975, salvaguardadas no texto original da Constituição de 1976 como irreversíveis. Essa disposição foi suprimida nas revisões constitucionais posteriores de 1982 e de 1989. Nessa sequência, a Lei n.º 11/90, de 5 de Abril de 1990, denominada Lei-Quadro das Privatizações (LQP), abriu caminho às reprivatizações de múltiplas empresas, entre as quais a EDP.

3. Na salvaguarda do interesse público nas empresas de sectores onde este tivesse especial relevância, a LQP era cautelosa. Assim, o artigo 15.º, n.º 1, estabelecia que A título excepcional, e sempre que razões de interesse nacional o requeiram, o diploma que aprovar os estatutos da empresa a reprivatizar poderá prever, para garantia do interesse público, que as deliberações respeitantes a determinadas matérias fiquem condicionadas a confirmação por um administrador nomeado pelo Estado”. A forma como o Estado português colocou em prática tal dispositivo da LQP foi a criação de golden shares (acções privilegiadas). Importa aqui evidenciar que se o Estado português continuasse a deter golden shares na EDP teria todos os meios, desde logo no âmbito da administração da empresa, para travar à partida o que de facto terá sido uma venda da concessão de barragens. Assim, ficou sem instrumentos para impedir que a administração da empresa — que reflecte os interesses dos accionistas, não os interesses do Estado português — transformasse a venda de jure numa operação de restruturação empresarial (cisão e fusão).

4. A perda das golden shares na EDP é assim crucial neste caso. Merece aqui ser lembrada nos seus traços essenciais. Leva-nos também a actuações no passado da Comissão Europeia e do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que não estão isentas de reparos substantivos, pois reflectem uma incompreensível visão (ultra)liberal do mercado, incluindo em sectores económicos estratégicos e infra-estruturas críticas, como é o caso da energia. A Comissão instaurou uma acção judicial contra o Estado português, argumentando que a detenção das golden shares com direitos especiais violava o artigo 63.º do TFUE que proíbe as restrições aos movimentos de capitais. O TJUE, no acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 11 de Novembro de 2010, Processo C-543/08, Comissão Europeia contra República Portuguesa, deu razão à Comissão. Nesse acórdão, confirmando aliás uma jurisprudência consolidada, declarou que com a detenção de acções privilegiadas na EDP o Estado português não cumpria as obrigações que lhe incumbiam por força da livre circulação de capitais previstas no âmbito do mercado único.

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O negócio da venda das seis barragens no Douro foi anunciado em Dezembro de 2019 ESTELA SILVA/LUSA

5. Ainda que indirectamente, a actuação da Comissão e a decisão do TJUE de 2010 estão na origem da perda do controlo estatal sobre a EDP. O contraste é flagrante com outros Estados da União, como ocorre com a França relativamente à Électricité de France (EDF), na qual o Estado detém mais de 80% do capital. É verdade que para o Estado português a decisão judicial europeia surgiu na pior altura, pois em resultado da crise de 2008 teve de pedir assistência financeira internacional e implementar um duro programa de austeridade. Abriu mão das golden shares na EDP e noutras empresas sem qualquer compensação directa e vendeu de forma precipitada a parte da EDP que ainda detinha em 2011 e 2012. Paradoxalmente, o maior beneficiário dessa abordagem (ultra)liberal da União Europeia sobre a circulação de capitais em sectores estratégicos, bem como da política de privatizações insensata do Governo português — ambas nocivas do interesse público —, foi o Estado chinês, que é o maior accionista actual da EDP, através da China Three Gorges. Em 2019, sete anos após a entrada na EDP, a China Three Gorges já tinha recebido mais de 40% de retorno do seu investimento em dividendos. Neste contexto, falar-se da privatização da EDP e de liberdade de circulação de capitais é quase uma piada de mau gosto.

6. A Comissão Europeia tem agora oportunidade de se redimir do seu questionável legalismo do passado, imbuído de um (ultra)liberalismo lesivo do interesse público. Há aqui averiguações preliminares a efectuar pois os contratos não foram divulgados. É necessário saber se estamos perante a transmissão de uma concessão de exploração ou se houve uma transmissão da propriedade das barragens/imóveis. É ainda necessário saber se, no caso de ter havido concurso público para as concessões iniciais (algo que parece não ter acontecido, o que as tornaria ilegais), será admissível, à luz das regras europeias sobre os concursos públicos, que se proceda à ulterior transmissão das concessões sem novo concurso público. Para além disso, se, como sugerem os factos publicamente conhecidos, a EDP está a abusar do regime de isenções do Estado português (artigo 60.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais) para transformar uma venda de facto (seja da concessão, seja da propriedade) numa restruturação empresarial de jure, então isso equivale a um auxílio de Estado de mais de cem milhões de euros à empresa. Importa notar que no âmbito das regras de concorrência europeias, o artigo 107.º, n.º 1, do TJUE estabelece que são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados-membros, os auxílios concedidos pelos Estados ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas.

7. Cabe assim à Comissão Europeia averiguar em profundidade este caso e, a confirmarem-se os dados que têm vindo a público, repor a legalidade europeia contra a confrangedora permissividade das autoridades nacionais face às regras dos concursos públicos e aos auxílios estatais. Quanto à EDP, tem ainda a possibilidade de afastar a péssima imagem criada. Cabe-lhe demonstrar que está imbuída de uma genuína responsabilidade social e de um compromisso real com a comunidade. A empresa afirma que “a nossa responsabilidade social não se esgota numa política de mecenato. É um compromisso sério com os valores que defendemos, fundamentais para reforçar a ligação da EDP com a sociedade portuguesa”. Todavia, até agora, apenas evidenciou preocupação com os lucros, em especial os lucros dos seus três maiores accionistas — a China Three Gorges (Europe), S.A., a Oppidum Capital, S.L. e o BlackRock, Inc.  Se há efectivamente responsabilidade social, terá de devolver parte do seu lucro, sob a forma de impostos, às terras de Miranda e do Alto Douro. Não transferi-lo para o Estado chinês através da China Three Gorges (Europe), S.A. e para empresas de capitalismo financeiro oportunístico como a BlackRock (EUA) e Oppidum Capital (Espanha), que prosperam à custa de uma comunidade e região desfavorecidas.

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