A pandemia como oportunidade

Se formos capazes de sair da letargia, unir esforços, escolher a fraternidade e o bem colectivo como prioridades, estaremos no caminho certo.

Há cerca de um mês e meio, Manuel Carvalho escreveu no PÚBLICO um editorial intitulado “A crise tratada com um encolher de ombros”. Nesse texto, a fadiga é tida como causa da displicência com que o Estado e/ou o Governo tratam um “tecido económico arrasado por quase um ano de pandemia”. A procura de soluções, e o editorial acaba com o desejo do autor de que “o Governo terá de ser enérgico e determinado”, pode encontrar na pandemia a razão para uma viragem cultural, social e económica, que tire o português do torpor, da indiferença e da inépcia em que vive, ou sobrevive, nos momentos difíceis, como é o actual.

Ao contrário dos períodos difíceis próprios por que passámos, como a descolonização, a integração dos retornados ou as falências de tesouraria que nos obrigaram a pedir apoio externo, para só lembrar factos mais recentes, a pandemia atravessa horizontalmente o mundo, abarcando ricos e pobres, com passado ou sem ele, abrindo feridas profundas numa Europa titubeante em que nos inserimos, incapaz de acertar um caminho firme na resolução da crise sanitária e económico-social.

O que se passou, ou passa, com as vacinas, avanços e recuos, danças e contra danças políticas e financeiras, opiniões credíveis ou quase, justifica o abalo que a convicção europeia dos portugueses tem tido. É claro que a integração de Portugal na Europa afigura-se como caminho sem retorno, tal é o mealheiro de porta aberta a que recorremos sempre que uma minoria político-ideológica do burgo experimenta uma qualquer nova invenção condenada ao fracasso.

Cá dentro, a nossa pequena história das vacinas pode servir de reflexão, tão exemplar foi na demonstração da incapacidade e fanatismo ideológico dos que pensaram resolver a crise sanitária amochilando conhecimentos à medida que o tempo decorria. Por certo, com a ajuda divina de que o português tanto gosta, tomou o controlo do barco responsável competente, uma guerra com múltiplas batalhas, o desafio para atingirmos a imunidade de grupo.

Parece fácil aceitar o “acaso” neste recaminho com resultados palpáveis, um “acaso” que não esconde o mérito, algo secundário na nossa vivência social, onde as amizades e o agradecimento de favores têm preferência na avaliação curricular de candidatos a chefia.

Sendo a existência portuguesa um arremedo no conceito europeu, talvez pela estrutural dependência que temos do exterior, habituamo-nos a vencer a fragilidade e impotência dos tempos difíceis com soluções de ocasião, refocando a percepção das nossas imagens idílicas e narcísicas, numa aproximação à realidade que somos. Gostamos de reflectir, discutir hipóteses e doutrinas, adoramos a sonoridade das palavras, a semântica da língua, a inutilidade das frases bonitas. Contudo, adquirimos traquejo, apesar da inércia para acções que exigem trabalho, aproveitando a pandemia como uma oportunidade para exportar um humanismo e liberdade cultural em troca da elevadíssima bênção financeira que a Europa nos destina.

Há muito que vivemos com máscara, estamos habituados a confundir o império renascentista que fomos com a realidade que somos, exaltando uma megalomania doentia, um fenótipo que nos acompanha. Ao tempo, D. Manuel exibia-se nos seus passeios por Lisboa com um rinoceronte e quatro elefantes; hoje em dia, a diferença não é grande, com os diletantes a passear o Porsche.

É esta paleta de potencialidades que nos pode permitir escolher o nosso destino, esquecer egoísmos e invejas, diluir o fosso que separa uma minoria esgotada nas suas convicções político-ideológicas e um povo asséptico e temeroso. Se formos capazes de sair da letargia, unir esforços, escolher a fraternidade e o bem colectivo como prioridades, estaremos no caminho certo para exportar emoções, culturas de cor variável, abraços de humanismo, contribuindo para o bem-estar de outros europeus aglutinados em famílias de computadores na procura da eficiência e do êxito. Aprendendo e ensinando, numa troca legítima de valores, pode ser o reconhecimento da nossa realidade e importância.

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