Somos com quem comemos

Somos o que comemos, dizem-nos. Mas é importante não esquecer que tão ou mais importante é com quem comemos.

Confinamento. Hora de jantar. Passo os olhos pela TV. Num dos canais noticia-se que subiram as taxas de obesidade. Noutro discorre-se sobre um restaurante qualquer a que temos mesmo de ir, depois de também nos ter sido sugerido um carro desportivo, um passeio a não perder e nos é revelada a casa de um casal que a mostra, orgulhoso, enquanto discorre sobre a superficialidade, o perigo da exposição da intimidade e a ilusão que as redes sociais podem ser para os mais novos.

Mudo outra vez de canal. Começa uma entrevista com um dos cozinheiros do momento, valorizando o hedonismo, o prazer de comer, garantindo que se tem exagerado nos discursos de moderação e que cozinhar é arte e mais isto, aquilo e aquele outro. E por último, já depois de ter passado por um assustador concurso de cozinha, deparo-me com uma típica peça de TV da temporada, com uma senhora satisfeita por ser Primavera e estarmos à beira do fim de mais um confinamento, mas avisando que o Verão está à porta e temos de preparar os nossos corpinhos com dietas, corridas e ginásios, tudo em nome da boa aparência e da saúde de todos.

Nisto levanto-me para ir ao frigorífico e, no meio de tantas contradições, fico, digamos assim, confuso sobre o que jantar. Há muita gente que se escandaliza quando vai a uma exposição de arte contemporânea — muitas vezes movida pela contextualização do artista sobre a obra ou preocupada com lógicas de estatuto social — e chega lá e começa a dizer que se sente enganada, que aquilo até ela podia ter feito, e que o discurso sobre a obra suplanta a obra e assim, e assado, e cozido. Por falar nele, no cozido, a mim acontece-me esse tipo de fenómeno, mas é quando vou às Finanças — acho aquela linguagem codificada feita para ninguém perceber nada — e também, na última década, com as narrativas à volta da alimentação e os cozinheiros e os lugares que têm para nos oferecer novas experiências.

Sejamos justos. Há boas práticas, mas também há idas a exposições, perdão, a restaurantes, em que a prova é, como dizer, insatisfatória. Na arte, quando não se compreende, pode dizer-se que se sentiu. Na cozinha contemporânea fica-se só com larica e os bolsos vazios. Dito isto, das coisas que mais sinto falta no confinamento é das idas a restaurantes. De preferência, dignos, com boa matéria-prima, tranquilos, calorosos e sem preços exagerados. Não precisa de ter um cozinheiro cientificamente inovador, mas apenas alguém que cozinhe com saber, brio e afectividade.

A alimentação tornou-se numa nova religião. Escolhemos diferentes regimes dietéticos como um acto de fé. Com a promessa do paraíso e a vida imune à doença no horizonte. Não podemos é pecar, claro está. Para expiar o pecado da gula, havia o jejum e a abstinência. Agora emagrecer é um exercício penoso, não para salvar a alma, mas em busca do corpo ideal. Somos o que comemos, dizem-nos. Claro que sim. Comer é também um acto político. Mas esta hiper-representação da alimentação (hoje é activismo, ética, resistência, competição para ver quem come de forma mais sustentável, saudável e responsável), parece ter-nos feito esquecer que tão ou mais importante do que comemos, é com quem comemos.

A mesa pode ser uma revolução, um espaço para a criação de uma comunidade de amizade, convivência e partilha. Algo diferente da competição que se sente hoje na alimentação e nada ver com o desejo de estatuto social que exibe. Contra o individualismo hedonista, o prazer como bem partilhado. Um regime dietético não deveria ser nem a procura do supérfluo, nem ascese, mas a criação de um tipo de satisfação equilibrada, contínua e autêntica, como uma sociedade em que as necessidades básicas fossem satisfeitas (alimentação, casa, trabalho, cultura) e onde cada um fosse livre de existir com prazer. Bom apetite.

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