Opinião plural

Quase meio século após o 25 de Abril, seria tempo de a imprensa se abrir a um debate civilizado sobre a colonização, a guerra de África e a descolonização.

O PÚBLICO assinalou os 60 anos do início da revolta no Norte de Angola com um artigo da jornalista Patrícia Carvalho, um conjunto de fotos desse momento e de outros posteriores, e uma opinião do historiador Manuel Loff. As fotos originaram protestos de vários leitores. A eles respondeu o director Manuel Carvalho, na última coluna do provedor, defendendo que o jornal procurou encontrar uma solução editorial equilibrada para assinalar a efeméride. Surgem agora outros leitores a interrogar-se sobre que equilíbrio levou à publicação da análise de Manuel Loff. Na perspectiva deles, o jornal transmitiu uma visão unilateral dos acontecimentos.

Pelas razões já expostas nesta coluna (20 de Março de 2020), o provedor não se pronuncia sobre os textos de opinião divulgados pelo PÚBLICO. Dito isto, é por demais evidente que dar voz apenas a uma das correntes de opinião acerca da guerra de África corresponde, na prática, a silenciar as outras. É uma opção de que o provedor discorda. Existem estudiosos e analistas portugueses que têm uma visão diferente dos acontecimentos que se assinalavam e do contexto histórico em que eles se inserem. Não vejo razão válida para não os ouvir.

As interrogações em torno desta guerra não remetem para um passado longínquo, nem são de somenos importância. Antes pelo contrário. Trata-se de uma realidade que mexe directamente com um período recente da nossa História, uma realidade que afectou e afecta alguns milhões de portugueses ainda vivos se contabilizarmos os que lá combateram, os que, vivendo lá, tiveram de regressar a Portugal e as famílias de todos eles. O contexto geopolítico, nacional e internacional, que levou ao desencadear da guerra de África é passível de várias leituras respeitáveis e, na opinião do provedor, os leitores do PÚBLICO têm o direito de as conhecer na medida em que todas elas podem ajudá-los a formar a sua opinião.

Index

A questão pontual dos 60 anos passados sobre o início da revolta no Norte de Angola inscreve-se na polémica mais vasta sobre o colonialismo e o racismo que tem alimentado o espaço mediático nos últimos tempos. As diferentes tomadas de posição sobre esses temas desencadeiam reacções vigorosas de alguns leitores, como testemunha o correio que eles vão dirigindo ao provedor.

A esse propósito, escreve o leitor David Francisco: “Um dos factores que me levou a assinar [o PÚBLICO] quando andei a reflectir sobre qual seria a melhor escolha, segundo os meus critérios, foi, para além da qualidade dos conteúdos, a sua independência editorial. Constato que, recentemente, este último factor começa, na minha opinião, enquanto leitor, a fraquejar. Quando leio na secção de opinião contributos de pessoas como Mamadou Ba, que pouco prestam à independência, semeiam frequentemente o ódio e a divisão da sociedade, fico desapontado enquanto vosso leitor. Bem sei que vivemos num Estado de direito, e que a liberdade de expressão é ‘sagrada’, mas tal como não espero que o PÚBLICO tenha um dia, como opinador, André Ventura, no lado oposto, também não espero ser confrontado com opiniões extremistas, neste caso de Esquerda.”

O provedor compreende a posição dos leitores politicamente mais moderados, mas também as posições mais extremadas. Todas elas fazem parte da nossa vida colectiva e da maneira como a interpretamos. Continuando a não me pronunciar sobre os textos de opinião, recordo uma vez mais que o PÚBLICO é um espelho de uma sociedade multifacetada e que cumpre tanto melhor a sua missão quanto mais pontos de vista reflectir dentro dos limites da convivência democrática. O contrário desta posição de princípio corresponde a interpretações subjectivas que sempre conduziram ao silenciamento do pensamento livre – que deve ser o nosso, mas também o dos outros.

Os silenciados da História foram-no sempre pelas mais elevadas e nobres razões, desde o Index da Igreja, que pretendia defender os Dogmas e combater o protestantismo (o qual, chegada a sua vez, também instituiu o seu próprio Index), até à nossa caseira Censura encarregada de zelar pelos “superiores interesses da Nação”. Em todos os casos, o silenciamento foi imposto em nome do Bem ou dos amanhãs que cantam. Afinal, e feitas as contas, da União Soviética à Argentina, passando pelo Camboja, os diktat dos polícias do pensamento acabaram reduzidos a curiosidades históricas, das quais só os aprendizes de Estaline, de Pinochet ou de Pol Pot podem ter saudades. O ensinamento também vale para o presente.

A guerra de África

Alguns leitores questionam o provedor a propósito do título que deu à coluna de 20 de Março de 2021. Porque não utilizar referências mais comuns, como Guerra do Ultramar ou Guerra Colonial? A resposta é simples: escrevo “Guerra de África” como escrevo Guerra Civil de Espanha e não guerra franquista ou guerra republicana. E faço-o também porque acompanho e concordo com a terminologia utilizada pela imprensa da França, uma das mais velhas democracias do mundo, quando se refere à Guerre d’Indochine ou à Guerre d’Algérie.

É por estes nomes que elas são identificadas e que os leitores dos jornais as identificam, independentemente dos juízos políticos e ideológicos que cada um possa fazer sobre elas. A imprensa e as enciclopédias britânicas vão mais longe. No caso da guerra do Quénia, que durou onze anos, entre 1952 e 1963, e na qual foram mortos ou executados cem mil nacionalistas da etnia kikuyu, a imprensa e as enciclopédias britânicas optam por uma denominação ainda mais “egocêntrica” e chamam-lhe The Mau Mau uprising ou The Mau Mau revolt, a revolta Mau Mau. Ainda assim, os britânicos sabem do que se trata.

No caso português, a “guerra de África” – a menos que se queira falar de um teatro de operações em particular é uma definição que remete para a identificação e localização do conjunto desses conflitos, fugindo às “geografias ideológicas”, por muito que elas correspondam à visão dominante num determinado momento. São estas razões que me levam, quando me refiro à guerra que, no presente, assola o Níger, o Chade, a Nigéria, o Burkina Faso e o Mali, a chamar-lhe “Guerra do Sahel” e não guerra tribal ou religiosa – coisas que elas também são. Para informar não é preciso rotular.

A polémica em torno da guerra de África já está inquinada que baste pelo ruído das chamadas redes sociais, onde os insultos boçais são utilizados como argumentos. Isso é a antítese de um debate sereno entre pessoas civilizadas que procurem iluminar as múltiplas facetas de um acontecimento sempre extremo e complexo como é a guerra. É um debate que só peca por tardio. No plano da opinião pública, ele tem obrigatoriamente de passar pela imprensa. Recusá-lo é escolher o conforto de pantufas intelectuais de esquerda ou de direita – e é pouco à luz da melhor tradição do PÚBLICO, que se afirma como um lugar aberto à discussão dos acontecimentos que interpelam os seus leitores.

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